quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O dinheiro, a nobreza e a vaidade intelectual


Por Mara Narciso


Houve um tempo em que o rei, quando precisava de dinheiro - e isso era o tempo todo-, vendia títulos de nobreza. Quando há 201 anos Dom João VI , Rei de Portugal, chegou ao Brasil trazendo no navio uma família real dividida entre o medo da guerra de e o pavor dos bárbaros de , trouxe com ele uma nobreza cheia de títulos e sem um tostão, encontrando aqui na colônia comerciantes com dinheiro o bastante para almejar e comprar esses mesmos títulos. Assim, nessa época surgiram marqueses, condes, viscondes e barões. E entre ter dinheiro ou títulos de nobreza, o melhor era ter as duas coisas. Então, desde os primórdios de nossa sociedade multi-estratificada, havia uma diferenciação entre os dois principais tipos de nobres: os locais trabalhadores ricos e os de além mar com as necessidades da ostentação e a alegre execução do ócio. Os títulos portugueses eram hereditários; os brasileiros duravam apenas uma vida.

Os anos se passaram e os títulos de nobreza brasileiros foram substituídos por outros tipos de importâncias. O dinheiro, desde sempre, foi um divisor da população, sendo que na época da ditadura militar os títulos de estratificação também passavam pelas insígnias militares. No topo da escala havia os generais, embaixo, o povo amordaçado. Sem entrar no mérito da questão ditatorial, a civilização sempre encontrou um jeito de separar as pessoas em castas. Nessa época também era bom ter um amigo de alta patente.

Bem depois, veio a fase do mil vezes repetido “ter em vez de ser”. Pois o bom mesmo é ter para poder ser, diz quem tem. Aquela velha frase mais utilizada em Brasília: “Sabe com quem está falando?” é também usada a exaustão em todos os cantos desse nosso amado Brasil..  Numa terra onde quase todos pensam que são importantes, fica-se até na dúvida sobre quem é que manda e quem ainda consegue obedecer.

Durante muito tempo, o modelo de poder em que se mostravam mansões, automóveis de luxo, jóias caras e viagens internacionais serviu, mas veio a esgotar-se. Então foi preciso criar novos e urgentes comportamentos sociais. O saber passou a ser uma outra moeda de troca, o que não é de todo mal. Mas as pessoas não se satisfazem em fazer um curso superior. Vieram as especializações, as pós-graduações, os “emebieis”. Acrescentar outros cursos superiores também é insuficiente. É preciso ter um mestrado. Quando este termina se pergunta se não será feito um doutorado, ou mesmo um pós-doutorado. E o que se ? No lugar de ostentar títulos de nobreza, ou de apresentar as patentes militares, o que se mostra hoje são os títulos do saber, numa clara ostentação intelectual, sempre borrifada por tola vaidade. Assim, em vez de colocar nos ombros e no peito as medalhas e outros símbolos do quanto se é importante e culto, hoje se mostram diplomas. Mas o cúmulo dos acontecimentos é, em pleno sol quente de meio dia de sábado em Montes Claros, vermos na rua um doutor, com todas as letras maiúsculas do seu imponente título, trajando uma roupa típica de um “peagadê” nos Estados Unidos: roupa social completa da cabeça aos pés e um jaleco branco e longo, apontando-se para a população incauta e parecendo querer dizer: pessoal, olhe aqui um pós-doutor em carne, osso e trajes!


*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. Poder, de fato, é ter liberdade. Inclusive a liberdade de questionar e ser crítico em relação ao poder. Como você acaba de fazer, Mara. Boa lavra.

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  2. Nossas convenções podem ir do absurdo ao ridículo. Nem sempre percebemos, e fazemos parte delas, inclusive as aplaudindo. Coitados de nós, Marcelo. Obrigada pela presença.

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