quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Namorar escondido


* Por Mara Narciso

Meu pai me proibia namorar. Recebi seu recado. Minha mãe dizia: “quando seu pai souber, vai  dar um murro em você”. Estudei no Colégio Imaculada Conceição desde os cinco anos de idade, quando lá só estudavam meninas. Quando aparecia algum rapaz, era como a chegada de um furacão. Lembro-me das visitas de Beto Guedes e Tiupas, que eram cantores e tinham um “conjunto” musical. As aulas paravam. As meninas corriam para os corredores. Não era permitido que eles entrassem no pátio. Ficavam na recepção e de vez em quando chegavam até à janela. Eram lindos com seus cabelos longos e o ar rebelde. Eles queriam, mesmo à distância, ver as meninas mais bonitas da cidade.

Aos quinze anos fui estudar no Colégio Marista São José. Lá havia rapazes e moças meio a meio. Logo formamos um grupinho de estudos, Dulce Soares, Cristina Mesquita, Geraldo Macedo e eu. As carteiras cabiam duas pessoas e numa ocasião, o nosso professor de Física Afonso Celso Guimarães, nos permitiu sentar Geraldo e eu na mesma carteira, para fazermos o exercício do livro. Foi quando entrou na sala o Diretor Irmão Ladislau Figueiredo, que, postado em frente a nós dois falou: “vocês deveriam ter um pouco mais de decência”.

Quase todas as tardes nos reuníamos na casa de Cristina ou de Dulce. Na minha casa era proibido, e naquele tempo, 1971, moças não visitavam rapazes. Pelo menos os nossos pais não nos davam essa permissão. Éramos um grupo estudioso e dedicado, e cada um de nós tinha alguma habilidade, mas Geraldo tinha todas elas. Eu era muito tímida. Na época usava-se mini-saia. Estávamos os quatro num dos quartos, com os cadernos em volta de dois colchões, um sobre o outro, num equilíbrio instável, e eu, sentada numa das beiradas, com meu peso pena da ocasião, caí de pernas para o alto, morrendo de vergonha.

Todos nós tínhamos 15 anos, e gostávamos mais de estudar na casa de Dulce, já que Dona Ismar, sua mãe, era muito camarada. Numa certa tarde, meus olhares e os de Geraldo mudaram de rumos, e começamos a trocar bilhetinhos durante os estudos. Era o dia 11 de maio de 1971, dia em que começamos a namorar. Dulce disse que fui eu que fiz o pedido, mas fomos nós dois. Na rua, Geraldo queria segurar-me a mão, mas evitei. Na nossa primeira saída, eu que morava no centro, a cinco quarteirões, já fui vista pelo meu pai, que passou de carro. Foi logo perguntando à minha mãe de quem se tratava. Como era de família conhecida, e mãe alegou ser colega com o qual eu tinha ido estudar, fomos deixados em paz. Exceto pelo meu irmão que era um crítico contumaz, de mim e do meu primeiro namorado.

Apaixonamos-nos e o namoro prosperou. Era escondido, e por isso, nós andávamos lado a lado, após as 17 horas, palmilhando quadra a quadra sem nos tocarmos. Sabíamos o dia da troca das vitrines, e depois das 18 horas, íamos entrando em todas elas, especialmente na Feira das Louças.

Todos sabiam do namoro, pois durante o recreio ficávamos juntos. Havia um monitor de alunos para não deixar os casais ultrapassarem a perigosa faixa de segurança, na direção do campo de futebol e do bosque de eucaliptos. Obedecíamos, e ficávamos a comer pirulito Zorro e balas dadinho Dizioli perto da cantina. Geraldo queria dividir o tempo e conversar com seus colegas, com os quais jogava futebol. Ele jogava bem, e de um singelo apartamento na Avenida Santos Dumont,para o qual me mudei, perto do Colégio, eu o olhava jogar usando uma potente luneta.

Namoro escondido, passando pelas mesmas ruas, e à mesma hora, no centro da cidade, já nos sentíamos em casa.  Girávamos pela praça Dr. Carlos, íamos até a Avenida Coronel Prates, comprávamos sorvete africano na Sorveteria Pinguim (chocolate e amendoim), e engordei um monte de quilos. Só não foram mais devido às longas caminhadas. Uma vez, Geraldo, olhando-me de cima abaixo falou: “você está gorda”. Quando o namoro acabou, após um ano, usei essa crítica final como estímulo para perder cerca de 11 kg em 40 dias, e nunca mais engordei.

Às vezes entrávamos na casa de Dulce, para descansar, mas ficávamos pouco tempo, com receio de incomodar Dona Ismar, sua adorável mãe. Aos domingos tinha matinê das 4,  e depois missa, mas antes das 19 horas precisava estar em casa. Raramente íamos à casa do nosso colega Jerônimo, filho do dono da Padaria Globo, a melhor da cidade. Subíamos de elevador, numa grande emoção. Era um namoro puro, e raramente conseguíamos dar um beijo, o que hoje chamam de selinho.

Geraldo telefonava à tardinha, quando tinha treino. Ligava o rádio e ficávamos a ouvir músicas via telefone. Uma vez, no Natal ele me deu um disco de Roberto Carlos, com a música “Detalhes”. Um tio de Geraldo, Alexandre, morava no Rio de Janeiro, e ele ia para lá nas férias. A saudade faltava me matar. Os Correios, especialmente no fim de ano, extraviavam as cartas e houve uma vez que a correspondência dele não chegou, fazendo-me cair no choro.

Uma vez fomos juntos com dois amigos, Jerônimo e Elizabeth assistir ao filme “Fugindo do Inferno”, com Steve McQueen. Quando acontecia a primeira cena, meu irmão apareceu para me levar embora. Uma mulher tinha ligado para meu pai, dizendo que eu estava dando show no cinema, isso, ao lado dos colegas de Medicina da minha mãe. Fui embora, e desde então, não mais tive sossego com a vigilância do meu pai.

Dois meses depois, chegou a hora de crescer, estudar, buscar a formação profissional. O amor que eu tinha por ele, era muito maior do que o dele por mim. Fomos o primeiro namorado e primeira paixão um do outro. Isso marcou a mim de forma mais intensa do que a ele. Terminado o namoro por cobranças familiares e a pouca idade, poucos meses depois, ele mudou-se para Belo Horizonte, para fazer pré-vestibular para Engenharia. Fui fazer Medicina, e uma vez, depois de muitos meses sem conversar, passamos um pelo outro no Pentáurea Clube, lugar onde costumávamos nos avistar, mas sem nunca ficarmos juntos, devido à presença do meu pai, e Geraldo me disse: “Fiquei muito orgulhoso por você ter passado no vestibular de Medicina”. Vermelha e de cabeça baixa, ainda muito louca por ele eu lhe disse: “eu sempre tive inteira confiança em você”. Ele começou Engenharia Química e depois fez Elétrica. Trinta e oito anos depois nos reencontramos na condição de bons amigos.

Era assim que se namorava escondido em minha cidade. Geraldo foi e é a pessoa mais inteligente que já conheci na vida.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. Bacana, Mara. Como disse o Luis Nassif numa crônica inspirada, lembranças assim a gente guarda em frascos de cristal. Abraços e parabéns.

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  2. Dulce, personagem da história e minha melhor amiga não gostou do texto. Geraldo, o primeiro namorado sim, mas preocupou-se com a minha falta de pudor em externar nossa história. Urariano Mota divulgou para uma turma dele, que, pelos indícios terminou o Ensino Médio em 1968. Acabei me envergonhando de viver em 1971, por força da tradição, um ritual de décadas antes. Enfim, acabei narrando uma ode a ingenuidade, uma canção a pureza, e também uma crítica aos costumes medievais, na época da mini-saia, do amor livre, da pílula anticoncepcional, dos Beatles, dos Rolling Stones, da contracultura, da Sociedade Alternativa, do sexo grupal, Woodstock e das comunidades hippies. Agradeço mais uma vez a sua opinião, Marcelo.

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