Namorar escondido
* Por
Mara Narciso
Meu pai me proibia
namorar. Recebi seu recado. Minha mãe dizia: “quando seu pai souber, vai dar um murro em você”. Estudei no Colégio
Imaculada Conceição desde os cinco anos de idade, quando lá só estudavam
meninas. Quando aparecia algum rapaz, era como a chegada de um furacão.
Lembro-me das visitas de Beto Guedes e Tiupas, que eram cantores e tinham um
“conjunto” musical. As aulas paravam. As meninas corriam para os corredores.
Não era permitido que eles entrassem no pátio. Ficavam na recepção e de vez em
quando chegavam até à janela. Eram lindos com seus cabelos longos e o ar
rebelde. Eles queriam, mesmo à distância, ver as meninas mais bonitas da
cidade.
Aos quinze anos fui
estudar no Colégio Marista São José. Lá havia rapazes e moças meio a meio. Logo
formamos um grupinho de estudos, Dulce Soares, Cristina Mesquita, Geraldo
Macedo e eu. As carteiras cabiam duas pessoas e numa ocasião, o nosso professor
de Física Afonso Celso Guimarães, nos permitiu sentar Geraldo e eu na mesma carteira,
para fazermos o exercício do livro. Foi quando entrou na sala o Diretor Irmão
Ladislau Figueiredo, que, postado em frente a nós dois falou: “vocês deveriam
ter um pouco mais de decência”.
Quase todas as tardes
nos reuníamos na casa de Cristina ou de Dulce. Na minha casa era proibido, e
naquele tempo, 1971, moças não visitavam rapazes. Pelo menos os nossos pais não
nos davam essa permissão. Éramos um grupo estudioso e dedicado, e cada um de
nós tinha alguma habilidade, mas Geraldo tinha todas elas. Eu era muito tímida.
Na época usava-se mini-saia. Estávamos os quatro num dos quartos, com os
cadernos em volta de dois colchões, um sobre o outro, num equilíbrio instável,
e eu, sentada numa das beiradas, com meu peso pena da ocasião, caí de pernas
para o alto, morrendo de vergonha.
Todos nós tínhamos 15
anos, e gostávamos mais de estudar na casa de Dulce, já que Dona Ismar, sua
mãe, era muito camarada. Numa certa tarde, meus olhares e os de Geraldo mudaram
de rumos, e começamos a trocar bilhetinhos durante os estudos. Era o dia 11 de
maio de 1971, dia em que começamos a namorar. Dulce disse que fui eu que fiz o
pedido, mas fomos nós dois. Na rua, Geraldo queria segurar-me a mão, mas
evitei. Na nossa primeira saída, eu que morava no centro, a cinco quarteirões,
já fui vista pelo meu pai, que passou de carro. Foi logo perguntando à minha
mãe de quem se tratava. Como era de família conhecida, e mãe alegou ser colega
com o qual eu tinha ido estudar, fomos deixados em paz. Exceto pelo meu irmão
que era um crítico contumaz, de mim e do meu primeiro namorado.
Apaixonamos-nos e o
namoro prosperou. Era escondido, e por isso, nós andávamos lado a lado, após as
17 horas, palmilhando quadra a quadra sem nos tocarmos. Sabíamos o dia da troca
das vitrines, e depois das 18 horas, íamos entrando em todas elas,
especialmente na Feira das Louças.
Todos sabiam do namoro,
pois durante o recreio ficávamos juntos. Havia um monitor de alunos para não
deixar os casais ultrapassarem a perigosa faixa de segurança, na direção do
campo de futebol e do bosque de eucaliptos. Obedecíamos, e ficávamos a comer
pirulito Zorro e balas dadinho Dizioli perto da cantina. Geraldo queria dividir
o tempo e conversar com seus colegas, com os quais jogava futebol. Ele jogava
bem, e de um singelo apartamento na Avenida Santos Dumont,para o qual me mudei,
perto do Colégio, eu o olhava jogar usando uma potente luneta.
Namoro escondido,
passando pelas mesmas ruas, e à mesma hora, no centro da cidade, já nos
sentíamos em casa. Girávamos pela praça
Dr. Carlos, íamos até a Avenida Coronel Prates, comprávamos sorvete africano na
Sorveteria Pinguim (chocolate e amendoim), e engordei um monte de quilos. Só
não foram mais devido às longas caminhadas. Uma vez, Geraldo, olhando-me de
cima abaixo falou: “você está gorda”. Quando o namoro acabou, após um ano, usei
essa crítica final como estímulo para perder cerca de 11 kg em 40 dias, e nunca
mais engordei.
Às vezes entrávamos na
casa de Dulce, para descansar, mas ficávamos pouco tempo, com receio de
incomodar Dona Ismar, sua adorável mãe. Aos domingos tinha matinê das 4, e depois missa, mas antes das 19 horas
precisava estar em casa. Raramente íamos à casa do nosso colega Jerônimo, filho
do dono da Padaria Globo, a melhor da cidade. Subíamos de elevador, numa grande
emoção. Era um namoro puro, e raramente conseguíamos dar um beijo, o que hoje
chamam de selinho.
Geraldo telefonava à
tardinha, quando tinha treino. Ligava o rádio e ficávamos a ouvir músicas via
telefone. Uma vez, no Natal ele me deu um disco de Roberto Carlos, com a música
“Detalhes”. Um tio de Geraldo, Alexandre, morava no Rio de Janeiro, e ele ia
para lá nas férias. A saudade faltava me matar. Os Correios, especialmente no
fim de ano, extraviavam as cartas e houve uma vez que a correspondência dele
não chegou, fazendo-me cair no choro.
Uma vez fomos juntos
com dois amigos, Jerônimo e Elizabeth assistir ao filme “Fugindo do Inferno”,
com Steve McQueen. Quando acontecia a primeira cena, meu irmão apareceu para me
levar embora. Uma mulher tinha ligado para meu pai, dizendo que eu estava dando
show no cinema, isso, ao lado dos colegas de Medicina da minha mãe. Fui embora,
e desde então, não mais tive sossego com a vigilância do meu pai.
Dois meses depois,
chegou a hora de crescer, estudar, buscar a formação profissional. O amor que
eu tinha por ele, era muito maior do que o dele por mim. Fomos o primeiro
namorado e primeira paixão um do outro. Isso marcou a mim de forma mais intensa
do que a ele. Terminado o namoro por cobranças familiares e a pouca idade,
poucos meses depois, ele mudou-se para Belo Horizonte, para fazer
pré-vestibular para Engenharia. Fui fazer Medicina, e uma vez, depois de muitos
meses sem conversar, passamos um pelo outro no Pentáurea Clube, lugar onde
costumávamos nos avistar, mas sem nunca ficarmos juntos, devido à presença do
meu pai, e Geraldo me disse: “Fiquei muito orgulhoso por você ter passado no
vestibular de Medicina”. Vermelha e de cabeça baixa, ainda muito louca por ele
eu lhe disse: “eu sempre tive inteira confiança em você”. Ele começou
Engenharia Química e depois fez Elétrica. Trinta e oito anos depois nos
reencontramos na condição de bons amigos.
Era assim que se
namorava escondido em minha cidade. Geraldo foi e é a pessoa mais inteligente
que já conheci na vida.
*Médica endocrinologista,
jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto
Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Bacana, Mara. Como disse o Luis Nassif numa crônica inspirada, lembranças assim a gente guarda em frascos de cristal. Abraços e parabéns.
ResponderExcluirDulce, personagem da história e minha melhor amiga não gostou do texto. Geraldo, o primeiro namorado sim, mas preocupou-se com a minha falta de pudor em externar nossa história. Urariano Mota divulgou para uma turma dele, que, pelos indícios terminou o Ensino Médio em 1968. Acabei me envergonhando de viver em 1971, por força da tradição, um ritual de décadas antes. Enfim, acabei narrando uma ode a ingenuidade, uma canção a pureza, e também uma crítica aos costumes medievais, na época da mini-saia, do amor livre, da pílula anticoncepcional, dos Beatles, dos Rolling Stones, da contracultura, da Sociedade Alternativa, do sexo grupal, Woodstock e das comunidades hippies. Agradeço mais uma vez a sua opinião, Marcelo.
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