Os sete relógios do meu avô
* Por
Cândido Motta Filho
O meu avô Fernando
possuía sete relógios de pêndulo. No escritório, um; na saleta de entrada,
dois; dois na sala de jantar; dois na copa. A casa era silenciosa, onde nunca
se falava alto. Só os relógios, tique-taque, tique-taque. Marcando as horas com
pequenas diferenças, badalavam, compassados, as horas e quartos de hora.
Meu avô era um velho
educador. Seu colégio, na cidade de Nossa Senhora do Amparo, granjeara fama e
por ele passaram alunos que se tornaram famosos, na política e nas profissões
liberais.
Depois, por motivos que
desconheço, ele se transferiu para São Paulo. Íamos então receber suas bênçãos
num prédio que alugara no Largo do Arouche, com cinco janelas para o largo e um
alto portão de entrada ao lado, prédio que se conserva até hoje, ao lado da
Academia Paulista de Letras. Vivia com duas filhas, ambas viúvas. A mais velha,
tia Cocota, que perdeu o marido, tio Cizínio, num enfarte fulminante; a mais
nova, tia Nenê, perdeu o marido num desastre da Estrada de Ferro Inglesa. Ambas
deixaram filhos pequenos e travessos, que foram domados, para não fazerem
algazarra, numa casa que continuava a ter a fisionomia de colégio.
Meu avô dava aulas de
latim, português e rudimentos de história. Além disso, recebia, como hóspedes,
estudantes que vinham do interior do Estado.
As duas filhas,
traumatizadas, eram mais espectadoras que auxiliares de meu avô. Ele era,
afinal, quem superintendia a casa, olhando desde a sala de visitas até os
problemas de limpeza. Era também viúvo. A mulher falecera quando ele tinha apenas
trinta anos e ela não tinha passado da casa dos vinte.
Ainda estava, com os
filhos, em Porto Feliz, onde nascera, quando aconteceu a proclamação da
República. A sua alegria de republicano e liberal durou pouco, ao assistir não
só ao adesismo em massa e as crises sucessivas do regime. A renúncia do
Marechal Deodoro, o fechamento do Congresso, o governo Floriano Peixoto, a
revolução de 1893 eram para ele conseqüências de um povo despreparado para a
democracia republicana. Redobrou, com isso, sua dedicação ao ensino, convicto
de que, ensinando, estaria concorrendo para que a República se tornasse um dia
o coroamento civil de uma sociedade de homens livres e iguais.
A mudança do interior
não lhe alterou os hábitos, nem sua filosofia de vida, que era uma mistura de
romantismo e realismo. Era enérgico e compenetrado, apesar de não possuir boa
saúde. Na mocidade sofrera certos ataques, que desapareceram na idade madura,
para o que concorreu muito seu método grave de vida. Afora as horas de aula,
vivia lendo, em seu escritório, os clássicos gregos e latinos, e convivendo com
os seus relógios.
Além dos alunos, meu
avô educava os sete relógios de pêndulo que possuía, Rodeava-os a todo
instante, corrigindo-os, adiantando os ponteiros de uns ou atrasando os
ponteiros de outros. Eu olhava esses relógios, perfilados junto à parede, com
as cabeças enfeitadas como topetes, e tinha a impressão de que havia um diálogo
constante entre eles e meu avô.
Às dez horas da noite,
a casa ficava em profundo silêncio. Só os relógios continuavam; tique-taque,
tique-taque. Cada relógio tinha uma história e, por isso, todos eles eram
veneráveis. Um viera de Itu e estava no prédio em que se realizou a Convenção
Republicana. João Tibiriçá, seu presidente, abriu a sessão memorável da instalação
e mal ela começou o relógio se pôs a badalar.
O trem, que trouxera a
comitiva do imperador para a inauguração da Estrada de Ferro Ituana, entrou na
estação apinhada de povo com quase meia hora de atraso, conforme denunciava o
relógio. Estava instalado logo na entrada do sobradão, por onde passavam os
convencionais, e todos eles, para comprovar a exatidão da hora em que
compareciam, olhavam para o relógio, como se ele fosse um comandante dando
ordens.
Os dois relógios da
sala de entrada vieram de Porto Feliz. Um da chácara da família Motta, situada
junto às barrancas do Tietê. E foi olhando muitas vezes para ele que,
preocupado com o tempo, Almeida Júnior esboçou o seu quadro A partida das
monções.
O outro pertencera à
família de Venâncio Aires. Ele deixara as terras de Sorocaba e Porto Feliz para
fazer sucesso no jornalismo rio-grandense.
Os da sala de jantar
tinham vindo de Capivari. Um pertencera ao velho Cesário Motta, pai de Cesário
Motta Júnior, relógio que vivia às turras com o relógio da matriz e que ficou
por algum tempo parado, como sem conserto, protestando contra a proclamação da
República.
O outro relógio viera
da fazenda da família Ferraz do Amaral. Dele se contava uma história pitoresca.
A de um escravo fugido que nele se ocultara, em 14 de maio, sem saber da
abolição da escravatura. Como parasse, diante da presença do intruso, Nhô
Augusto Ferraz do Amaral foi abri-lo e dele saiu, correndo, o negro fugido!
Os dois da copa tinham
sido do colégio na cidade do Amparo. Um fora comprado de um fazendeiro que
vendeu tudo o que tinha, como protesto contra a abolição da escravatura. O
outro viera da cidade de Socorro, como peça histórica, por ter pertencido ao
Visconde de Sapucaí. Ambos, porém, para o meu avô, tinham aderido à República,
tanto que funcionavam rigorosamente.
Isto é o que nos
contava o avô, com minúcias, para dizer o que na verdade representavam.
Para mim, eram os
relógios apenas discípulos de meu avô, que com eles se entendia
maravilhosamente, como discípulos disciplinados e compreensivos. Meu avô
levava-os a sério. Quando qualquer coisa de anormal, de agradável ou
desagradável, acontecia, ele inspecionava os relógios. Porque eles não batiam
horas, mas contavam histórias - quedas de ministérios, reunião de
conspiradores, de antiescravistas e republicanos, a deposição de Américo
Brasiliense ou os últimos momentos do governo do Marechal Deodoro. Em tudo
isso, o romantismo e o realismo do meu avô se entrelaçavam e ele dava aos
relógios a presidência dos acontecimentos mundiais. Certa manhã chegou a
dizer-me:
Você não pode alcançar,
menino, o significado do relógio na história da civilização. Pense bem: sem ele
não haveria consciência histórica e demarcação de valores. Kant não teria
escrito a Crítica da razão pura, nem Napoleão teria perdido a batalha de
Waterloo!
Era o relógio
personagem real nas obras literárias. Citava a de Eduardo Prado, a propósito do
relógio de Catânia; Machado do Assis, escrevendo cenas de ciúme em torno de um
relógio de ouro; nas Memórias póstumas de Brás Cubas, a personagem central,
depois de saborear um beijo, fala nas horas que corriam à noite quando ela
ouvia o bater do pêndulo, com seu tique-taque soturno, vagaroso e seco. E se um
relógio parava, meu avô dava corda, para que ele funcionasse.
Desde aí, prestei
atenção a um relojoeiro instalado na Rua Jaguaribe. Todas as manhãs passava por
ali e não poucas vezes parava para ver os relógios de vários tipos e a figura
recurvada do relojoeiro sobre os relógios em conserto. Chamava-se Joseppi
Tizzoni, bigode caído sobre a boca bem talhada, os olhos quase saindo das
órbitas para demorarem na aparelhagem desregrada dos relógios. Quando estava de
bom humor, contava uma porção de histórias. Seu pai fora também relojoeiro e
morava num lugarejo no Vale d’Aosta conhecido como Francesco
"l’orologiaio". Morrera caído sobre uma pilha de relógios.
O filho veio para São
Paulo, com vinte e poucos anos. Conseguira trabalho nas oficinas da Casa
Michel, famosa casa de jóias em São Paulo e, depois, casado com uma patrícia
que morava na Rua Santo Antônio, se instalou, para enfrentar a vida, confiado
nos relógios, na Rua Jaguaribe.
Era taciturno e pouco
acolhedor, talvez preocupado com os inúmeros relógios que batiam, em todos os
tons e ritmos, junto a sua cabeça. Ali tudo regulava, menos ele, que confessava
que, um dia, ingressaria "nel mondo della folia, la più deliziosa e
festevole de la vita".
Aliás, não demorou
muito que isso acontecesse. Uma noite começou a gritar, dizendo coisas
desconexas, dizendo que Deus roubara-lhe todos os relógios, porque Deus achava
que o tempo é dado por Deus e não podia ser medido pelos homens.
E isso me fazia lembrar
o herói de Samuel Bulter, que foi jogado na prisão, ao chegar à Utopia, porque
estava de posse de um relógio!
(Dias lidos e vividos,
1977.)
*
Escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
Nenhum comentário:
Postar um comentário