Juiz da conjuntura e a conjuntura do juiz
* Por
Paulo Moreira Leite
O retrospecto das
campanhas presidenciais depois de 1989, parece ter formulado uma situação
constante: nas vezes em que o Partido dos Trabalhadores teve chances reais de
capturar — ou manter o governo — ocorrem eventos extraeleitorais capazes de
interferir no resultado da eleição. Foi assim em 1989, 2002, 2006 e agora, em
2014.
Se é fácil entender a
natureza explosiva dos depoimentos sobre a Petrobras que chegaram à Tv, na
conjuntura de um país que dentro de quinze dias irá votar para presidente da
República, também é conveniente avaliar a conjuntura do juiz Sérgio Moro,
responsável pela Operação Lava Jato.
Embora nenhum
presidente da República já tenha indicado ministros para o STF com base em
listas corporativas, em agosto o nome de Sérgio Moro surgiu numa lista de três
nomes da Associação de Juizes Federais, a AJUFE, que mobilizou seus associados
para criar uma lista tríplice de candidatos mais votados para ocupar a vaga
deixada pela aposentadoria de Joaquim Barbosa. Numa relação na qual nenhum nome
é incluído sem consentimento do próprio interessado, Sérgio Moro foi o mais
votado, com 141 votos.
Nem todos observadores
consideram que se trata de simples coincidência. Uma postura espetaculosa até o dia da eleição,
favorecendo a criminalização do governo Dilma Rousseff numa investigação que
está longe, muito longe de encerrada, pode ser motivo de recompensa depois da contagem
dos votos.
Começando pelo começo.
A Lei 12 850, de 2013, contém uma seção específica sobre Colaboração Premiada.
O parágrafo 2o. diz que “o acesso aos autos será restrito ao juiz, ao
Ministério Público e ao delegado de polícia.” No parágrafo terceiro, marca-se
um prazo para o fim do segredo: “o acordo deixa de ser sigiloso assim que
recebida a denúncia.”
Isso acontece porque o
Estado tem o dever de proteger cidadãos que decidiram colaborar com a Justiça e
deve evitar que sejam expostos publicamente. Também deve manter as revelações
em segredo, única forma de impedir que os demais implicados possam destruir
provas e construir álibis forjados unicamente para responder às denúncias
conhecidas de antemão.
Tanto a lei 12850 como
a experiência juridica mais elementar permitem questionar a divulgação dos
depoimentos de Paulo Roberto Costa e Alberto Yousseff sobre corrupção na
Petrobras, gravados e divulgados quando os dois se encontravam na condição de
colaboradores da Justiça. Neste papel, que pode assegurar a porta da liberdade
para pessoas que a Lei poderia condenar inicialmente a 50 e até 100 anos de
prisão, cada palavra, cada sentença, cada vírgula, tem um significado e uma
função. “O sigilo está na essência da delação premiada, “afirma o assistente de
um ministro do Supremo Tribunal Federal.
A própria presidente da
República, Dilma Rousseff, tentou obter a íntegra dos documentos que dão base à
delação premiada de Yousseff e Paulo Roberto Costa. Fez o pedido ao Supremo
Tribunal Federal e à Procuradoria Geral da República. Os dois pedidos foram
recusados, o que deixou a República brasileira numa situação institucional
insólita. Enquanto informações que deveriam ser mantidas em segredo são
divulgadas a conta gotas, por decisão de um juiz de primeira instância, a
presidente da República é prejudicada em seu dever maior, que é defender a
Constituição. Dilma não fazia uma simples retórica eleitoral quando denunciou,
referindo-se a seus adversários políticos: “Eles sempre querem dar um golpe. E
estão dando um golpe.”
A autonomia das
investigações policiais recomenda que se faça segredo — mesmo diante da
presidente da República — até o início das operações. O pressuposto é que dessa
forma é possível garantir que as investigações possam ser realizadas com mãos
livres por parte de policiais que tentam cumprir o dever de investigar todos os
suspeitos — inclusive o governo. Mas essa fase se encerra depois que são feitas
prisões e operações de busca e apreensão. Isso porque não se pode imaginar que
uma presidente possa ser mantida na ignorância sobre fatos e pessoas capazes de
representar um risco para o país.
Depois que a própria
Dilma Rousseff colocou a questão nestes termos, o juiz Sergio Moro distribuiu
nota dando explicações.
O juiz prestou um
esclarecimento importante. Explicou que não divulgou nem permitiu o vazamento
de depoimentos que integram os arquivos da delação premiada. Isso seria um
crime.
O que ele fez foi
divulgar “depoimentos prestados em
audência aberta e em ação penal publica, imperando os mandamentos
constitucionais do contraditório e da publicidade.” Moro alegou ainda que em
crimes “contra a Administração Publica a transparência nos processos e
investigações é a única forma de garantir o controle da população sobre a
gestão da coisa pública e sobre a ‘integridade da Justiça.” Disse também que a
divulgação, pela imprensa, é um “consectário normal do interesse público e do
princípio da publicidade dos atos processuais em uma ação penal na qual nãoi
foi imposto segredo de Justiça.”
Os argumentos de Sérgio
Moro seriam 100% coerentes — não fosse seu comportamento, de um magistrado que
não exibe maiores compromissos com a isenção, à frente da lendária balança que
simboliza a Justiça, mas coloca-se como parte do trabalho de acusação.
“Ele está agindo de
forma apaixonada, sem isenção, com uma postura politizada muito clara,” afirma
um integrante do Ministério Público Federal, onde já chegou o relato de que
jornalistas que cobrem o caso em grandes veículos costumam ser abastecidos por
um sistema de divulgação semelhante a das assessorias de comunicação, com
notícias frescas e argumentos explicativos.
Entre juristas,
considera-se uma extravagância que um magistrado, que mais tarde irá julgar
dois acusados, promova uma audiência pública onde eles são orientados a dar
depoimentos sob medida para serem divulgados em ambiente de escândalo. Pode-se
imaginar quem, nessa situação, deixaria de atender toda e qualquer solicitação
feita pela autoridade que na hora devida terá a palavra final sobre sua
liberdade.
No STF e especialmente
na sede da Procuradoria Geral da República, a gravação é vista como um atalho
formal, destinado a contornar a lei 12 850. Os documentos originais da delação
são mantidos num computador sem contato com a internet, em versão
criptografada. Ao mesmo tempo, Sergio Moro alimenta os meios de comunicação com
a coleta de depoimentos convencionais de toda Ação Penal, onde os delatores
falam como se estivessem respondendo a um interrogatório igual a qualquer outro
— quando todas as partes sabem de sua condição especial. A existência da
gravação e a decisão de divulgá-las foi anunciada até no twitter.
Como você deve ter lido
em outra nota neste espaço, para o professor Luiz Moreira, integrante do
Conselho Nacional do Ministério Público, “é lamentável que o sistema de justiça
produza essa anomalia e que um procedimento judicial cercado de técnicas
sofisticadas de colhimento dos testemunhos simplesmente se volte contra a ordem
judicial que determina seu sigilo.”
Outro aspecto é que Yousseff
e Paulo Roberto Costa têm sido orientados a nada dizer sobre autoridades com
direito a foro privilegiado, como ministros, senadores, deputados,
governadores. A explicação é inacreditável: é que essas revelações iriam
retirar o caso da guarda de Sérgio Moro, que ficaria obrigado a transferir o
caso para o STF. E daí?, pergunta-se. Nada.
É o que determina lei. O problema é político. No STF, dificilmente
haveria lugar para um carnaval pré-eleitoral. Encarregado de acompanhar a Lava
Jato, o ministro Teori Zavaski tem demonstrado uma postura zelosa e discreta.
É estranho que se
procure, abertamente, dirigir fatos investigados de acordo com as conveniencias
de uma autoridade encarregada de apurar e punir um delito, quando o enredo da
investigação indica outros caminhos. O nome disso é bagunça institucional, uma
situação intolerável, que deixou uma triste memória na AP 470, com distorções
que resultaram num julgamento com penas fortes a partir de provas fracas,
conduzido por um ministro-relator que esteve longe de exibir a postura
equilibrada de magistrado, comportando-se como uma peça auxiliar e até
principal da acusação.
A opção por um
depoimento completo — o criptografado, inviolável — e uma segunda versão,
pronta para divulgação, também permite uma seleção política de fatos e
personagens. Os enredos podem ser modificados conforme as necessidades do
momento.
Numa reportagem recente
sobre o depoimento de Paulo Roberto Costa, VEJA dizia que ele fez diversas
acusações ao PSB e ao ex-governador Eduardo Campos. Parecia muito razoável, já
que a usina Abreu Lima, centro de operações de Paulo Roberto Costa, foi
construída em Pernambuco, com a indispensável participação do governo de
Estado.
No depoimento divulgado
na semana passada, as referências ao PSB e a Eduardo Campos sumiram. Aécio
Neves tinha acabado de receber apoio formal dos socialistas. Será coincidência?
A presença de Alberto
Yousseff ajuda a dar volume às denúncias divulgadas mas a decisão de aceitar um
dos grandes doleiros do país no regime
de delação premiada causa muita estranheza. Em 2002 Yousseff já havia
colaborado com a polícia, durante a CPI do Banestado. Naquele momento,
livrou-se das penas principais porque reuniu provas contra 60 doleiros menores,
com os quais operava. Também admitiu ter movimentado US$ 5 bilhões em operações
ilegais. Em função disso, recebeu os benefícios previstos em lei. Como é
obrigatório em acordos desse tipo, assumiu o compromisso de que não iria mais
envolver-se em atividades criminosas. Mas Yousseff não cumpriu essa parte, como
as investigações de 2014 vieram a demonstrar. Mesmo assim, com a credibilidade
em dúvida, conseguiu ingressar no programa de colaboração com a Justiça,”o que
nunca imaginei que fosse acontecer depois que traiu o acordo de 2002,” afirma
um dos responsáveis pelas investigações do Banestado.
Há menos de um mês, no
julgamento de um habeas corpus, o Supremo anulou uma decisão de Sérgio Moro.
Seria um caso trivial no judiciário, onde instancias superiores existem para
modificar ou confirmar decisões dos patamares inferiores, não fosse pela
linguagem particularmente dura dos ministros. Ricardo Lewandovski, que era o
relator do caso, afirmou que “ele usurpou a competência” da instância superior.
Celso de Mello, que também julgou o caso, disse que a decisão de Sérgio Moro
foi um “ato absolutamente destituído de qualquer ortodoxia processual, na
medida em que o magistrado federal de primeira instância procedeu a uma conduta
de usurpação de competência deste Supremo Tribunal Federal.”
Em 2012, durante o julgamento
da AP 470, Sérgio Moro tornou-se assistente da ministra Rosa Weber, que fez
carreira na justiça do trabalho do Rio Grande do Sul. Partidário de punições
duríssimas, o juiz logo caiu nas graças de jornalistas que fazem a cobertura do
Supremo. Eles passaram a tratar Sérgio Moro como a eminência parda por trás das
sentenças que a ministra apresentava em plenário. Embora tivesse interesse em
permanecer no STF, chegando a enfrentar uma guerra nos tribunais para combinar
o trabalho em Brasília com a devida carga horária como professor da
Universidade Federal do Paraná, Sérgio Moro acabou retornando ao Paraná.
Na mesma semana em que
os vazamentos da Petrobrás chegavam a TV e aos jornais — em breve, estarão no
centro da propaganda política de Aécio —
o PGR Rodrigo Janot decidiu arquivar a denuncia criminal sobre o aeroporto de
Claudio. Sabe: aquela pista de 1 km que custou R$ 14 milhões ao contribuinte
mineiro e hoje decora a fazenda de um tio do candidato do PSDB.
Não é a primeira vez
que uma denúncia grave — embora a gravidade real dos fatos ainda não seja
inteiramente conhecida — chega ao segundo turno de uma eleição presidencial. O
retrospecto das campanhas presidenciais depois de 1989, quando o eleitor
recuperou o direito de escolher presidentes pelo voto direto, parece ter
formulado uma situação constante: nas vezes em que o Partido dos Trabalhadores
teve chances reais de capturar — ou manter o governo federal — ocorrem eventos
extraeleitorais capazes de interferir no resultado da eleição. Foi assim em
1989, 2002, 2006 e agora, em 2014.
Só se respirou uma
situação que se pode chamar de normalidade em ocasiões onde a vitória do PSDB
parecia assegurada — em 1994 e 1998 — ou em 2010, quando o candidato do PSDB
não empolgava sequer os próprios aliados. Em 2012, ano de eleições municipais,
que ocorreu o julgamento da AP 470. As principais sentenças, em ambiente de
triunfo, foram anunciadas às vésperas da votação. Decisões que representavam
garantias de direitos dos réus, como o desmembramento do julgamento foram
evitadas com o argumento de que não se deveria atrasar a decisão.
*
Paulo Moreira Leite é diretor do 247 em Brasília. É também autor do livro
"A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e
Washington e ocupou postos de direção na VEJA, IstoÉ e Época. Também escreveu
"A Mulher que Era o General da Casa".
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