Cinco minutos de realidade
* Por Urariano Mota
Estava até há pouco, até as 12
horas e 5 minutos deste sábado, sem assunto, sem ânimo, em uma apagada e vil
tristeza. Esterilidade completa, absoluta e angustiante. Então chegou uma
mensagem avisando que um texto de um professor brasileiro sobre a última
revolta em Paris será publicado em um grande jornal do Brasil. Texto pago! Que
felicidade, imaginem, porque em nosso país o costume é se publicarem de favor,
por favor, textos bem escritos, bem pensados, bem trabalhados. Isto enche a
gente de felicidade e esperança. Acende na gente o ânimo e todas as forças,
porque esse mestre brasileiro se encontra distante, na França, em dificuldades,
e isto não é justo nem justo nem justo.
Então por isto, em razão do ânimo que voltou, escrevo estas linhas:
Que bom seria se a literatura que
se publica resistisse a cinco minutos de realidade. Que bom seria se os autores
saíssem à rua, caminhassem pelos becos, pelos lugares, olhassem a cara das
pessoas e se vissem nelas, assim como um homem deve ler e ver a cara do seu
igual e semelhante. Não seria necessária uma pesquisa com método, cadernos de
anotações, estatística e parâmetros aceitos por comunidades da ciência. Não.
Bastaria que saíssem com o próprio talento, que não precisaria ser grande,
bastaria o aprendizado que acumularam na vida, bastaria que rompessem a crosta
do egoísmo, que saíssem da aura de grandes homens prenhes de erudição e
safadeza. Bastaria, enfim, uma agitação feroz e íntima, um sobressalto de uma
pequena revolução no próprio ser, para que descobrissem que mundo, vasto e maravilhoso mundo, têm sob os olhos e
as ventas, todos os dias.
Sabem, entendem?, estamos lidando
com gente. Estamos a ver pessoas de sangue, bondade e crueldade igualzinha à
que possuímos em nós mesmos. As ruas estão grávidas de homens felizes,
infelizes, que se cagam e mijam e sofrem e arrebentam como nós mesmos.
Passemos, escritores, tentemos passar, presumíveis bons homens, por cima das
fronteiras de classe, tentemos sair da própria e imunda pele, para que
renasçamos em novas peles e sorrisos. E assim digo, e assim escrevo, porque
tomei na cabeça os meus próprios 5 minutos esta semana.
O carro, o nosso automóvel
quebrou, mais uma vez. Eu, que sou o último homem da casa, o que é sempre uma
infelicidade para a minha mulher e filha, digo, “não, isto é comigo, sou eu que
vou à oficina”, e largo os livros, e largo Stendhal apresentado por Balzac, e
saio da tela do computador e vou resolver este problema. Resolver, maneira
imprópria de dizer, porque permaneço com cara de idiota (alguns amigos dizem
que não tenho outra), enquanto o mecânico levanta o carro, baixa-o, abre o capô
e resmunga palavras e palavrões incompreensíveis.
- O senhor terá que trocar a
correia dentada, a bomba d’água....
“A correia dentada explode o
motor?”, tenho vontade de lhe dizer, mas me recupero a tempo, e por isso com
mais sensatez lhe pergunto:
- Sim, mas onde está a bomba
d’água?
- Aqui, e me mostra uma coisa
pequena, inofensiva, que terrorista nenhum diria que se trata de uma bomba. Nem
eu.
- Ah, bom. Esse carro é da mulher
– defendo-me -, ela é quem cuida dele.
E a procurar um terreno seguro,
escolho o caminho das conversas de machos, o caminho de queixas e reclamações
contra as mulheres:
- É no que dá a gente sair pra
ajudar, perco horas longe do trabalho somente pra mulher não vir pra oficina do
mecânico, digo, mas percebo que o motivo da minha queixa para o mecânico é um
absurdo completo. No mundo dos machos os homens sempre resolvem problemas com
os carros, sempre.
- O senhor já ligou para o
escritório, avisando?
- Não, eu trabalho em casa,
respondo. E sinto que acabo de cometer outra surpresa.
Então antes que ele me pergunte a
natureza do meu trabalho, fujo para um muro próximo, me encosto em um muro,
cansado de ficar em pé e de me demonstrar um absoluto estúpido. E olho em
volta, e vejo. Um homem negro, alto e forte conduz um cachorro belo, muito
bonito, grande, esguio, pela oficina. Percebo as tetas e noto que é uma cadela.
Ela possui um andar, um porte de rei, se assim podemos escrever para expressar
uma alta nobreza entre os cães. E se não descemos os cães da sua nobreza,
acrescentamos, ao lembrar de reis como o obeso e balofo Dom João VI e da feia e
deselegante rainha inglesa. Queremos dizer, ela caminha com uma segurança e uma
leveza e uma elegância de quem sabe ser a senhora do território e não se exibe.
É uma natural bailarina, sem música, no palco do chão entre os carros. O homem acompanha essa majestade, diria, com
um porte de atleta, a segurá-la firme pela correia. Ao voltar, ele vem e se
aproxima de mim, sem palavras. E lhe digo:
- É uma cadela bonita. É fila?
- Não. É rodesiana... Rodesiano é
o cachorro que caça leões na África.
- Ah, respondo. E ao notar que
entre os trabalhadores ele se encontra em roupas comuns, sem uniforme de
operário, sem bata de mecânico, pergunto: - Você é o segurança?
- Sim, sou eu.
- Você arrisca a vida pelo
patrimônio dos outros, eu lhe digo.
- É.... ele me responde, e abre
um riso franco na bela face negra, que exibe uma prótese de dentes sem brilho,
mal posta, frouxa, no maxilar superior. – É.....
E o riso daquele homem não me
largou até aqui. A prótese ruim, fosca, lembra a sua pobreza. O riso diante do
perigo a que se expõe todas as horas, todos os dias, lembra, lembra, não, é a
generosidade das pessoas do povo, generosas porque não têm outra alternativa e
por índole também. Sorriem diante do perigo, “É...”.
Estes foram os meus 5 minutos de
realidade esta semana. Rodesianos são cães que caçam leões na África, aprendi.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro
da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e
“Dicionário amoroso de Recife”. Tem
inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
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