sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Ao remetente


* Por Assionara Souza 

Cada sentença uma cabeça. Sempre que alguém me obriga a falar a verdade, faço questão de mentir. Cresci com convicção certa de que mentir é, e não é?, a melhor forma de sobrevivência. Não vou abrir mão disso, nem que forçado a jurar sobre o Livro. Obrigação só para comigo, amém.

O senhor que não me condene. Sou inocente, sim. Sempre fui. A vida toda. Acredite-me. A moça chegou quieta e bonita pra cima de mim. Ela bem me olhou que eu vi. Roseana flor desabrochava.
— Como?
— O moço faz o quê?

Eu minto e bebo. Uma forma de me anestesiar melhor. Mas isso eu não disse a ela.

Há muito tempo o álcool me esquece de mim. A minha natureza é humana mesma, digo ao senhor. Sou o bicho homem cansado do mundo. Ninguém me manda. Ela olhou e eu lancei aquele meu sorriso especial de sempre.

Eu minto sim. E fumo também.

Já tem um tempo que o fumo anuvia esse qualquer descontentamento. Crio os bichos que um dia tentarão me devorar. Trago eles todos para o meu convívio. Ensino a beber, fumar e acreditar em histórias as mais. Sou o imperador das esquinas. Um dia soberano. Outro sobre nada. Quando menos, desconfiam olhos pro meu lado. Cobra quer mais é trocar a pele quando gasta. Me reajo. Por essa aí eu afirmo que não tenho a minha devida culpa. Malandragem de mulher é fazer o sujeito sentir-se em penas delas. Eu não tenho pena é de ninguém. Veio. Eu fui. A outra casca já estava escapando mesmo. Tingiu-se-me uma toda nova. A ponta tesa do chocalho balançando que só. Bom mesmo é ser especial. Acredite-me.

A Eva vestia uma saia serpenteante. Então eu não conheço os avisos do mundo? Só o que eu sei é contar. Esperar. Reconhecer. Culpado nunca. Estava pra mim que era aquela a milésima noite de nada para a primeira hora de tudo. Doença que eu curtia, remédio vinha a granel naquelas pernas estradas ao quero é mais do corpo dela. Minha especialidade é agradar a quem possa-me em dobro. Nasci com as manhas da paciência para aprender que certas privações guardam prazeres cem por um. Mas que nem tanto, pois houve noites e outros escuros. Lambi muitas azedas solidões. Fui solidário no azar. Aquela hora não tinha moral nem morais. Sei muito bem distinguir qualidades de pecado. Mentira é verdade inventada pra quem quer acreditar. Achando a certa para cada certa pessoa, dissolve-se a fronteira crueldade. Cresce geral enternecida paixão. Acredite-me. Eu cozo de fora pra dentro e ninguém repara desvio. Minto, sin´sinhô, mas sinto.

A moça estava carecida. Ciosa que estava. Aposto que já no passar do batom o coração estralou uma esperança vermelha. E não é em organizar com zelo os apetrechos da caçada que a presa vem direto pra o olho do fuzil? Eu não. Inocente sou. Ela se preparou. Reconheço. Sei medir exato o tempo do antes com a aparição do durante. É nisso que invisto meus verbos. Acredite-me. Essa moça lavou-se foi na intenção de sujar-se. E eu gosto da minha mão perto dessas vontades. Pensar é para o depois. O senhor que vá me desculpando.

Agora então a culpa é minha? Também não tenho os próprios compromissos públicos? Mulher que se clandestina deve prezar o silêncio. Gosto sim. Dizer no ouvido outro uma mentira úmida. Inverno todo carne e calor refaz-se. Por mentir é que desconfio. Dessas artes mulher já nasce aprendida. Tenho culpa é de nada. Acredite-me. Ela que. E sempre insistente.

No começo eu prefiro é as seduções. A saia toda preta. Ainda na perna o gume macho da navalha. Estou dizendo ao senhor. Ela antecipou-se antes. Eu vi isso no ardor que arrodeava sua figura. Olhou-me o escolhido. Meu fraco é só as mulheres. O resto rapinem, nem vejo.
— Como?
— O que é que o moço faz?
— Eu me disponho. Chamo-me todo eu: "Ao seu dispor". Muito prazer.

Nem sou só disso. Vá me acreditando. Cumpro a minha cartilha com a letra e o desenho. Gosto das metáforas para antes das metonímias. Aquelas sempre dizendo estas. Gato dá voltas três vezes para o leite da tigela ser melhor apreciado. Eu três vezes mil. Minhas mentiras. A moça interpretou caderno e lápis novos. Onde fui escrevendo caligrafias de seu corpo. Assimilamos. Eu e ela. Acredite-me.

Ser criado por mulher, quando não desvia, ensina a ser homem mais. Eu sabia e sei. O que ela tinha em casa: um sem sombra e sujo. Vergado do peso da própria vergonha. Ou ao contrário que é o mesmo. Um zelozim de si. Essa qualidade de tipo só quer o venha a nós. O vosso reino, que é bom, nada. Pense quem quiser que pense. Pensamentos são de quem os tenha primeiro até que na união vire opinião. Minto? Nunca. Esclareço. Mulher nasce é bicho ouvido pra frase de elogio. Se na minha frente e olhante eu não ia dizer que era só ela e ninguém a única no mundo? Foi na hora. Quem não sabe, pois aprenda.

O que ela sentia era ausência de relevâncias. Se a carne incendiava toda por dentro, guardar-se em vontades é que não podia. Tocar fogo por fora nunca jamais que não é moça arábica. Veio a mim. E o senhor sabe, eu disponho. Dispus. Convenci bem. Era uma flor, a Rosa. E existisse novidade que não vire senhora idosa? Sofri do mal do desagradei-me. Como eu disse. Gosto é das seduções. Dela muito apreço e gozo fiz completos. A moça água corrente, represou com o tempo. De umas mentiras é que não me aparento. Lá sou eu de me organizar exclusivo? Filho sou da minha mãe. E só. Minto é pra aguagem de canteiros. Nada de matos espinhos. Ciúme é fecha-a-cara e vá-se pra lá, não me serve. Agüento. Não, senhor.

Leve daqui sua filha, que me cansa é faz horas.

* Escritora


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