Três cavalos
com sela e cada homem segurando um relho (3)
* Por
Marco Albertim
Não fosse a súbita
aparição da velha com os dois netos, nem a visita da filha incensando o brejo
verdoso com o perfume de seu Royal Briar temporão, o vale do Engenho Bento
Velho teria sua planura rasa só abanada pelos galhos do bambuzal em volta; o
capim verde, com nós entre as hastes,
por certo estaria oscilando entre o balanço dos bambus e a umidade fecunda na
margem do riacho. Mesmo sem o balido de ovelhas, nem o bimbalho de chocalhos no
pescoço de uma rês ou outra, tão comuns nos alagadiços da Zona da Mata, o vento
sopraria morno, conchegando a terra e as gramíneas miúdas de arroz ocultas no
capinzal crescido.
A mulher subiu o
barranco de acesso à casa de farinha. A velha, com os netos de seu lado, não se
agoniou para dar boas-vindas à filha. Os pirralhos se desprenderam dela, inda
que não se alvoroçassem para trocar o
bodum de mortalha no vestido da avó, pelo cheiro já bebido do fustão impreciso
do vestido da mãe.
Ela agachou-se para
abraçar os dois de uma vez. Viu que nada mudara na palidez morena do rosto de
cada um. Beijou-os sem estalido nos lábios. Depois, tirou de um dos ombros as
alças da tiracolo de plástico florido, enfiou a mão nos fundos e retirou-a com
dois sacos fornidos de broas de milho. Os pacotes de bolachas de farinha,
entregou-os à velha; juntos, mais dois de farinha de milho para o cuscuz. Por
último, uma barra de queijo de manteiga cuja gordura colara no papel de seda
transparente; o gosto do queijo, já conhecido da família pela azedia do
amarelo-pardo da batata inglesa, era um petisco nunca recusado pela fome muda
dos meninos e da velha.
- Bença a mãe...
A mulher vinha roçando
os quarenta anos; inda que não os tivesse inteirados, os bicos piongos dos peitos, a base achatada e meio gorda, davam conta de
que metade de sua sustança se deixara extrair nos apalpos das carnes. Quando
pediu a bênção à velha, a indecisão da voz e o desengonço da mão direita
levantada com os dedos espremidos, tornaram-na tão submissa quanto sinistra;
olhou de través para os homens, e ficou ainda mais canhestra.
O caminho que
percorrera da estrada de piçarra, cruzando o vale em direção a casa, fora
reparado pelos olhos inertes do homem que a trouxera na anca do cavalo. Não se
despediram com palavras, nem trocaram acenos com os olhos para o provável
reencontro, visto que a cumplicidade carnal entre ambos há muito se embutira nos
sentidos.
Ela olhou para os homens sem esconder a
estranheza nos olhos. Os quinze homens não mais olhavam para a velha, dela já
tinham ouvido o bastante para conhecer-lhe os modos e o silêncio da boca
fechada. Para não se mostrar sem recato, olhou para o parelho que por trás de
uma moita de bambu, não afrouxara a rédea do cavalo para partir. Depois, mirou
curiosa os homens que tinham nos pés, na bandeja da casa de farinha, as lonas
para fincar o assentamento.
- Vão ficar aqui? -
perguntou aos homens, sem ajuizar nenhum em particular.
- Vamos aproveitar a
estação pra deixar o arroz crescer, o arroz e os caroços de feijão que nós
vamos enfiar em cima das covas -
respondeu o mais velho, o mesmo que inquirira da velha sobre a maternidade dos
meninos. Tinha um chapéu de feltro na cabeça, inclinou-o para trás para não
prensar a mulher com sua voz sem variação de tom.
Ela não respondeu, mas
o modo como olhou para o piso duro da casa de farinha, deu conta de um agouro
que podia vir da estrada de piçarra
vermelha. Entrou na casa junto com a velha e os filhos, levando as provisões
para a cozinha.
Os homens desceram o
barranco carregando as lonas. As barracas foram montadas em torno da vara em
cuja ponta movia-se a bandeira do MST. Terminado o trabalho no fim da tarde,
subiram o barranco. Três cavalos com selas mantinham-se quietos num dos oitões
da casa. Ninguém se assustou, assuntando mudos para os três homens, cada um
segurando um relho. Sentados no tronco de coqueiro estendido na frente da casa.
A velha e os meninos não saíram. A mãe sentara-se junto ao homem que a trouxera
com os mantimentos.
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife.
Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do
concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em
concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite,
integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”.
Tem três livros de contos e um romance.
Nenhum comentário:
Postar um comentário