Os povos novos e os povos emergentes
* Por
Darcy Ribeiro
Os povos-novos, dentre
os quais se inclui o Brasil, originaram-se da conjunção de matrizes étnicas
diferenciadas como o colonizador ibérico, indígenas de nível tribal e escravos
africanos, imposta por empreendimentos coloniais-escravistas, seguida da deculturação
destas matrizes, do caldeamento racial de seus contingentes e de sua
aculturação no corpo de novas etnias. Sua característica distintiva é a de
species-novae no plano étnico, já não indígena, nem africana, nem européia, mas
inteiramente distinta de todas elas. Ao contrário dos Povos-Transplantados que
conservam o perfil europeu e dos Povos-Testemunho das Américas que conduzem
dentro de si as duas tradições originais sem conseguir fundi-las, os
Povos-Novos concluíram sua auto-edificação étnica, no sentido de que não estão
presos a qualquer tradição do passado. São povos em disponibilidade, uma vez
que, tendo sido desatrelados de suas matrizes, estão abertos ao novo, como
gente que só tem futuro com o futuro do homem.
Mais ainda que os povos
das outras configurações, os Povos-Novos são o produto da expansão colonial
européia que juntou, por atos de vontade, as matrizes que os formaram, embora
só pretendesse criar empresas produtoras de artigos exportáveis para seus
mercados e geradoras de lucros empresariais. Esta intencionalidade de seu
processo formativo distingue também os Povos-Novos como sociedades, em certa
medida, instituídas; que surgiram como "certidões de nascimento",
como a carta de Pero Vaz Caminha e suas equivalentes, que eram também títulos
de posse da nova terra; que tiveram suas primeiras cidades fundadas por ordens
expressas e continuam criando-as artificialmente; que foram sempre reguladas em
sua vida econômica, social, política, religiosa e espiritual pela vontade
estatal, representada por burocracias coloniais e continuam regidas por
patriciados civis e militares, confiantes em que, pela outorga de leis e
decretos paternalísticos, possam resolver todos os problemas dentro da velha
ordem institucional.
Os primeiros
instrumentos de implantação dos Povos-Novos foram as feitorias de escambo que
trocavam com os índios bugigangas por produtos da terra. As instituições
reguladoras fundamentais surgiram depois com a fazenda e a escravidão. A
primeira forneceu o modelo organizacional de empresa que permitiu viabilizar
economicamente a colonização, atrelando os mundos do além-mar aos mercados
europeus. A segunda forneceu o mecanismo de conscrição da força de trabalho que
permitiria reunir e desgastar milhões de homens, convertidos, também aqui, no principal
combustível das empresas produtoras de ouro e prata, de açúcar, de algodão, de
café, de cacau e de muitos outros gêneros tropicais.
As fazendas e as minas
escravocratas, pondo em presença os europeus, como senhores, e os africanos e
índios, como escravos, criaram condições para o advento maciço de mestiços
gerados por europeus e índias, e de mulatos, gerados por europeus e negras,
fazendo surgir, simultaneamente, um estrato sócio-racial intermédio, igualmente
distanciado das matrizes originais. Este operaria como um novo agente de
caldeamento racial e de entrecruzamento cultural para produzir novos mestiços e
a todos incorporar na etnia nascente.
Os Povos-Novos se
configuraram segundo padrões distintos, conforme fossem ou não estruturados
como economias de plantação e, em conseqüência, contassem ou não com
contingentes negros, e conforme se originassem ou não a partir de protocélulas
étnicas, plasmadas antes da expansão do sistema de fazendas.
No caso do Brasil, da
Colômbia, da Venezuela e de algumas das Antilhas, o negro não só esteve
presente mas foi chamado a integrar-se em comunidades preexistentes já capazes
de preencher requisitos mínimos de sociabilidade antes de sua chegada. O negro
saía, assim, do desenraizamento de sua própria tradição - através da
deculturação - para aculturar-se num corpo de compreensões co-participadas, de
técnicas bem definidas de provimento da subsistência, de crenças e de valores
de uma etnia embrionária. Ali onde, ao contrário, faltaram essas protocélulas
étnicas, o escravo se encontrou só diante do capataz e do senhor. Não podendo
entender-se com seus companheiros, tomados de outras tribos, teve de apelar ao
mais fundo de sua humanidade para conservar-se humano, na condição de besta de
trabalho a que fora reduzido. Nestas circunstâncias, ao ser deculturado, só
aprendia a falar boçalmente a língua do amo e a produzir, segundo técnicas
inteiramente novas para ele, exibindo, por isso, uma infantilidade que parecia
corresponder ao seu primitivismo, mas que só exprimia as terríveis condições em
que vivia, como carvão humano das lavouras e das minas. Este foi o caso do Sul
dos Estados Unidos, das Antilhas inglesas, holandesas e francesas.
Ali onde a grande
lavoura não se implantou - como no caso do Chile e do Paraguai - não se contou,
por isto mesmo, com o negro e a influência indígena pôde prevalecer por mais
tempo. O europeu teve então de indianizar-se mais ainda e as populações
neo-americanas resultantes do cruzamento se constituíram predominantemente de
mestiços índio-europeus falando freqüentemente - como os paraguaios - as
línguas aborígenes e conservando muitos dos costumes originais, embora atuassem
como os principais agentes da erradicação do gentio tribal.
Na formação racial e na
configuração cultural destas variantes dos Povos-Novos, cada contingente
contribuiu em proporções distintas. O indígena contribuiu, principalmente, na
qualidade de matriz genética e de agente cultural, principalmente, na qualidade
de matriz genética e de agente cultural que transmitia sua experiência milenar
de adaptação ecológica às terras recém-conquistadas. O negro, também como
matriz genética, mas principalmente na qualidade de força de trabalho geradora
da maior parte dos bens produzidos e da riqueza que se acumulou e se exportou
e, ainda, como agente da europeização, que assegurou às áreas onde predominava
uma completa hegemonia lingüística e cultural européia. O branco teve o papel
de promotor da façanha colonizadora, de reprodutor capaz de multiplicar-se
prodigiosamente; de implantador das instituições ordenadoras da vida social; e,
sobretudo, de agente da expansão cultural que criou nas Américas vastíssimas
réplicas de suas pátrias de origem, lingüística e culturalmente muito mais
homogêneas que elas próprias.
O quarto bloco de povos
extra-europeus do mundo moderno é constituído pelos Povos-Emergentes.
Integram-no as populações africanas que ascendem em nosso dias da condição
tribal à nacional. Na Ásia se encontram também algumas configurações de
Povos-Emergentes que cumprem neste momento esse trânsito. Isto se dá
principalmente na área socialista, onde uma política de maior respeito às
nacionalidades permite e estimula sua gestação.
Essa categoria não
comparece na América, apesar do avultado número de populações tribais que ao
tempo da conquista contavam com centenas de milhares e até milhão de
habitantes. Esse fato, mais que qualquer outro, é demonstrativo da violência do
domínio, tanto colonial - prolongado por mais de três séculos - como nacional,
a que se viram submetidos os povos tribais americanos. Alguns deles foram
rapidamente exterminados; os demais, subjugados e consumidos no trabalho
escravo, se extinguiram como etnias e como substratos de novas nacionalidades.
Entretanto, seus equivalentes africanos e asiáticos, a despeito das duríssimas
formas de compulsão que sobre eles se exerceram e do terrível impacto sofrido,
emergem hoje à vida nacional.1
Os Povos-Novos das
Américas - e entre eles o Brasil - demonstram, em seu atraso relativo, o que
resulta de processos formativos institucionalizados pelo sistema de fazendas e
pela escravidão dentro de movimentos de colonização que se exercem sobre
populações de nível tribal. Seus desempenhos evolutivos, tanto no curso da
civilização agrário-mercantil como na urbano-industrial, foram e são medíocres
e contraditórios. Criaram, ontem como hoje, empresas prodigiosamente prósperas
mas de prosperidade não generalizável à população, nem capazes de permitir um
crescimento econômico acelerado porque transferem ao exterior a maior parte dos
frutos do trabalho nacional. Como tal, geraram uma estratificação social
encabeçada por uma classe dominante consular porque dependente de interesses
exógenos, e retrógrada porque oposta a qualquer transformação profunda na
estrutura sócio-econômica. E classes oprimidas, ontem afundadas na penúria como
escravos e hoje marginalizadas da força de trabalho regular. Entre estas
classes prevalece uma oposição tão profunda quanto a seus interesses
fundamentais, que se torna inviável qualquer institucionalidade democrática.
Nestas condições, nem chega a constituir-se um povo como categoria política
correspondente à totalidade da população e capaz de influir em seu próprio
destino, e toda ordenação sócio-política é despótica ou virtualmente
insurgente.
1. Na segunda metade do
século passado se levantou na América o único grupo indígena aparentemente
capaz, por sua importância numérica e por seus ethos, de afirmar-se como
Povo-Emergente; as tribos araucanas e as araucanizadas dos pampas e dos vales
andinos. Acossados por argentinos e chilenos, esses índios foram finalmente
dizimados; seus sobreviventes, os Mapuche chilenos, confinados em reservas,
sofreram uma decadência muito acentuada, da qual ascenderão, provavelmente,
como um modo variante de ser chileno.
(Os brasileiros. Livro
I - Teoria do Brasil, 1972.)
*
Antropólogo, escritor e político, membro da Academia Brasileira de Letras
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