Infância
* Por
Jorge Amado
Pouco me recordo de meu
pai. Ficamos muito crianças eu e minha irmã, eu com cinco anos, quando ele
morreu. Lembro-me apenas que minha mãe soluçava, os cabelos caídos sobre o
rosto pálido e que meu tio, vestido de preto, abraçava os presentes com uma
cara hipócrita de tristeza. Chovia muito. E os homens que seguravam o caixão
andavam depressa, sem atender aos soluços de mamãe, que não queria deixar que
levassem o seu marido.
Papai, quando vinha da
fábrica, me fazia sentar sobre os seus joelhos e me ensinava o ABC com a sua
bela voz. Era delicado e incapaz, como diziam, de fazer mal a uma formiga.
Brincava com mamãe como se ainda fossem namorados. Mamãe, muito alta e muito
pálida, as mãos muito finas e muito longas, era de uma beleza esquisita, quase
uma figura de romance. Nervosa, às vezes chorava sem motivo. Meu pai tomava-a
então nos seus braços fortes e cantava trechos musicais que faziam com que ela
sorrisse. Nunca ralhavam conosco.
Depois que ele morreu,
mamãe passou um ano meio alucinada, jogada para um canto, sem ligar aos filhos,
sem ligar às roupas, fumando e chorando. Tinha ataques por vezes horríveis. E
enchia de gritos dolorosos as noites calmas do meu Sergipe.
Quando após esse ano
ela voltou ao estado normal e quis acertar os negócios de papai, meu tio
provou, com uma papelada imensa, que a fábrica era dele só, pois meu pai -
afirmava com o rosto vermelho e as mãos levantadas num gesto de escândalo - meu
pai, meio louco e meio artista, deixara unicamente dívidas que meu tio pagaria
para não se desmoralizar o nome da família.
Mamãe silenciou,
coitada, e nos apertou nos seus braços, pois nós tremíamos toda a vez que meu
tio aparecia com a sua cara vermelha, a sua barriga cultivada, a sua roupa de
brim e aqueles olhos pequenos e perversos.
Vivia passando as mãos
pela barriga. O meu tio... Mais velho que meu pai dez anos, cedo se tocara para
o Rio de Janeiro, onde levou muito tempo sem dar notícias e sem que se soubesse
o que fazia. Quando os negócios de meu pai estavam prósperos, ele escreveu a
queixar-se da vida, dizendo que queria voltar. E veio, logo após a carta. Papai
deu-lhe sociedade na fábrica.
Veio com a esposa, tia
Santa, santa de verdade, pobre mártir daquele homem estúpido.
Papai vivia
inteiramente para nós e para o seu velho piano. Na fábrica conversava com os
operários, ouvia as suas queixas, e sanava os seus males quanto possível. A
verdade é que iam vivendo em boa harmonia ele e os operários, a fábrica em
relativa prosperidade. Nunca chegamos a ser muito ricos, pois meu pai, homem
avesso a negócios, deixava escapar os melhores que lhe apareciam. Fora educado
na Europa e tivera hábitos de nômade. Esquadrinhara parte do mundo e amava os
objetos velhos e artísticos, as coisas frágeis e as pessoas débeis, tudo que
dava idéia ou de convalescença ou de fim próximo. Daí talvez a sua paixão por
mamãe. Com a sua magreza pálida de macerada, ela parecia uma eterna
convalescente. Papai beijava as suas mãos finas devagar, muito de leve, com
medo talvez que aquelas mãos se partissem. E ficavam horas perdidas em longo
silêncio de namorados que se compreendem e se bastam. Não me recordo de tê-los
ouvido fazer projetos.
Nós, eu e minha irmã,
éramos como que bonecos para papai e mamãe.
Quando meu tio chegou
mudou tudo. Ele não fora à Europa e se parecia muito com vovó, que fizera dos
dezoito anos de vida em comum com meu avô uma dessas tantas tragédias anônimas
e horríveis que nascem do casamento da estupidez com a sensibilidade. Dava nos
filhos dos operários, o que não admirava, porque, como murmuravam pela cidade,
ele espancava a esposa.
Pobre tia Santa! Tão
boa, amava tanto as crianças e rezava tanto que tinha calos nos dedos,
provocados pelas contas do rosário. Morreu, e a doença foi o marido. Meu tio
deflorara uma operária e fora viver com ela publicamente. Santa não resistiu ao
desgosto e morreu com o rosário entre as mãos, pedindo a papai que não
abandonasse o miserável.
A fábrica prosperou
muito. Nunca consegui compreender por que o salário dos operários diminuiu.
Papai, fraco por natureza, não tinha coragem de afastar titio da fábrica e um
dia, quando tocava ao piano um dos seu trechos prediletos, teve uma síncope e
morreu.
[...]
Quando meu pai morreu e
após meu tio declarar a nossa miséria, fomos morar numa casinhola no começo de
uma ladeira. Eu fiquei muito mais perto do proletariado da "Cu com Bunda"
do que da aristocracia da decadente São Cristóvão.
Acostumei-me a jogar
futebol com os filhos dos operários. A bola, pobre bola rudimentar, fazia-se de
bexiga de boi cheia de ar. Tornei-me camarada de um garoto Sinval, rebento
único de uma operária, cujo marido morrera em São Paulo, metido numas encrencas
com a polícia, não sei bem por quê. Sei que os operários falava dele como de um
mártir. E Sinval desancava os patrões o que mais que podia. Franzino, os ossos
quase a aparecer, possuía no entanto uma voz firme e um olhar agressivo.
Chefiava a gente nos furtos às mangas e cajus dos sítios vizinhos. E toda vez
que meu tio passava, cuspia de lado. Dizia que apenas completasse dezesseis
anos embarcaria para São Paulo, para lutar como seu pai. Só muito depois é que
eu vim compreender o que significava tudo isso.
Freqüentamos, eu e
Elza, a escola. Mamãe fazia rendas e seus pais ajudavam o nosso sustento.
Quando fiz quinze anos fui trabalhar na fábrica. Eu era então um rapazola
forte, troncudo. O menino anêmico que eu fora se transformara em um adolescente
de músculos rijos treinados em brigas de moleques.
Aparentava muito mais
idade do que tinha realmente. Vivera sempre entre molecotes pobres da cidade,
pobre que eu era como eles. Agora ia ser igual a eles completamente, operário
da fábrica. Sinval não me diria mais com seu sorriso mofador:
- Menino rico...
Cinco anos aturei na
fábrica a brutalidade do meu tio. Sinval, aos dezessete, vendera o que possuía
em roupas e móveis e tocara para as fábricas ou para as fazendas de São Paulo.
A primeira e última notícia que tivemos dele foi dois anos depois. Estava
metido numa greve e esperava ser preso a qualquer momento. Depois nem uma
carta, nem um bilhete, nada. Os operários afirmavam:
- Seguiu o destino do
pai - e cerravam os punhos enraivecidos. Mas a fábrica apitava e eles se
curvavam, magros e silenciosos.
Minhas mãos estavam
então calejadas e meus ombros largos. Esquecera muito do pouco que aprendera na
escola, mas em compensação sentia um certo orgulho da minha situação de
operário. Não trocaria meu trabalho na fiação pelo lugar de patrão. Meu tio, o
dono, estava bem mais velho e mais vermelho e mais rico. A barriga era o índice
da sua prosperidade. À proporção que meu tio enriquecia ela se avolumava.
Estava enorme, indecente, monstruosa. Poucas fortunas em Sergipe igualavam
nesse tempo à sua. Dava esmolas unicamente ao convento (onde papava jantares) e
ao orfanato. A este ele dava esmolas e órfãs. Não se podia contar pelos dedos,
nem juntando os dos pés, o número de operárias desencaminhadas por meu tio.
Paixão que tive aos
catorze anos por uma rameira gasta e sifilítica, com a qual iniciei a minha
vida sexual. Amor, aos dezoito, platônico, por uma loura pequena do orfanato
que foi ser freira, e enfim aos vinte, o pensamento de me amigar com a
Margarida, operária como eu. Isso deu maus resultados. Meu tio andava também de
olho na Margarida, que ostentava uns seios altos e alvos, junto a um rosto de
criança travessa. Margarida um dia me contou que o patrão andava a apalpá-la. E
ria, cínica. Eu acho que foi o seu riso que me fez ir às fuças de meu tio.
Estraguei-lhe a cara hipócrita. Fui despedido.
São Paulo parecia à
minha mãe e a Elza o fim do mundo. Por nada deixariam que eu fosse para lá. Eu
comecei a falar em Ilhéus, terra do cacau e do dinheiro, para onde iam levas e
levas de emigrantes. E como Ilhéus ficava apenas a dois dias de navio de
Aracaju, elas consentiram que eu me jogasse, numa manhã maravilhosa de luz, na
terceira classe do "Murtinho", rumo à terra do cacau, eldorado em que
os operários falavam como da terra de Canaã.
Mamãe chorava, Elza
chorava, quando me abraçaram na tarde em que segui para Aracaju - tomar o
vapor. Eu olhei a velha cidade de São Cristóvão, o coração cheio de saudade.
Tinha certeza de que não voltaria mais à minha terra.
Os filhos dos operários
jogavam futebol com uma bexiga de boi cheia de ar.
*
Um dos maiores escritores de todos os tempos, membro da Academia Brasileira de
Letras/
Nenhum comentário:
Postar um comentário