segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Vida sem metáforas

* Por Daniel Santos


Os vizinhos ainda recordam que, da última vez, ele saía de casa na manhã de sábado para comprar pão, mas um carro preto apareceu, saltaram homens de paletós escuros e sumiram com ele sem restar o menor vestígio.

Durante dois anos, a família acreditou que o tal voltaria, mas agora já não há mais esperanças, se bem recebam suas cartas com regularidade. Não revela onde está, sequer desconfia, mas alimenta-se à farta e guerreia.

Sim, guerreia. É o que faz. Ignora por que e contra quem, só sabe que deve atirar para permanecer vivo. E obedece. Se vence, ganha abraços dos soldados. Se perde, abandonam-no dias seguidos numa ilha deserta.

Num dia, está na selva; noutro, na neve – rotina de sobressaltos que quase o enlouqueceu. Mas ele superou – assegura. Afinal, a compensar, tem mulheres duas vezes ao mês, não paga impostos, vive de pilhagens ...

A vida tornou-se simples: é o que é, sem antônimos nem metáforas! Afirmou-se assim, substantivo, singular, bestial demais para voltar aos seus. Nem quer. Aliás, nas cartas mais recentes, pede que o esqueçam.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.




Um comentário:

  1. Então a providência de agora é não mais escrever. Uma forma de vida incomum.

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