segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Utilidade de Deus

* Por Daniel Santos


Após violarem o lacre de documentos iniciais, homens de pesados hábitos marrons não mais se entreolharam, e não só pela vergonha de traírem o que era fundamento: urgia limpar a sujeira sem deixar vestígios.

Os que até então se diziam pios desceram o capuz até os olhos para não se identificarem durante a consagração da sociedade, pois facínoras preservam-se no anonimato, onde a Lei troa vã sem vingar seus ecos.

Apressaram-se, pois, pelos pátios e corredores do templo inaugural, desceram a arca de cedro até a mais funda cisterna, onde a masmorra aguardava Quem àquela hora deveria estar pelas ruas ao alcance de todos.

Mas não, lá não estaria mais, nunca mais. Seus donos tinham outros planos. Pretendiam poupá-Lo para que vigorasse, se possível, por toda a  eternidade e lhes abarrotasse, assim, dia após dia, a sacolinha do dízimo.

Por isso, foi tudo muito rápido, e logo depositaram a arca onde as águas primeiras porejavam. Rápido, sim, antes que alguém da rua ouvisse o Deus vencido implorar a Seus patrões que O devolvessem ao caos.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.



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