Riso
ou choro?
* Por Pedro J. Bondaczuk
O padre Antonio Vieira afirmou, em um debate (pouco
conhecido) que travou, no palácio da ex-rainha Cristina Alexandra, da Suécia,
em Roma, no ano de 1674: “Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe
pareciam ignorâncias; Heráclito chorava porque todas lhe pareciam misérias:
logo maior razão tinha Heráclito de chorar, que Demócrito de rir; porque neste
mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não
seja miséria”.
A questão posta naquela oportunidade era quem tinha
razão: o filósofo que havia rido, com indisfarçável sarcasmo, das coisas do
homem ou o que tinha chorado, compadecido das suas fraquezas. Seu companheiro de debate era o colega
jesuíta, Jerônimo Catâneo. O salão da ex-rainha era famoso nessa época pelo
alto nível das discussões que lá ocorriam. A idéia do desafio havia partido
dela, que estipulara, aleatoriamente, os papéis que caberiam aos dois célebres
oradores sacros. A um, competiria a tarefa de advogar o choro e a outro,
conseqüentemente, a de defender o riso.
Nesse dia, vários ilustres convidados estavam
presentes. Eram pessoas não somente do clero, mas também filósofos, advogados,
médicos e artistas das mais diversas modalidades de arte. Pode-se dizer que
toda a elite pensante da Cidade Eterna marcava presença. O salão estava
repleto, bem mais do que de costume. A fama de Antonio Vieira havia
ultrapassado fronteiras e se consolidava, mais e mais, à medida que o tempo
passava.
Fazia 20 anos que Cristina estava em Roma, após
abdicar do trono, ao se converter ao catolicismo. Já o ilustre sacerdote estava
na cidade há cinco anos, desde 1669, após ser libertado da prisão, perseguido
que fora, em Portugal, pela Inquisição, por defender o direito dos judeus de
terem a sua crença respeitada. Fora, até mesmo, convidado para ser o pregador
particular da ex-rainha, mas recusara, argumentando que era exclusivo do seu
rei, do qual estava, então, distante (em todos os sentidos). Catâneo, por seu
turno, não era menos ilustre e competente do que seu companheiro de debates,
embora não tão brilhante na argumentação e, muito menos, tão incisivo e
carismático.
Faz-se indispensável, aqui, um breve esclarecimento
ao leitor, não afeito à filosofia, notadamente a grega, sobre quem foram os
dois filósofos citados no desafio. Demócrito de Abdera, que viveu entre cerca
de 460 AC
e 370 AC ,
embora considerado pré-socrático, foi contemporâneo de Sócrates. Seu grande
feito foi o de popularizar a teoria atômica, ou atomismo. Escreveu cerca de 90
livros e é dele a célebre frase: “Tudo o que existe no universo é fruto do
acaso ou da necessidade”.
Heráclito de Éfeso, por seu turno, é bastante
anterior a Demócrito. Viveu entre 540 AC e 470 AC . Ele, sim, pode ser chamado, sem susto e
sem erro, de pré-socrático. É considerado, no mundo da filosofia, como “pai da
dialética”, ou seja, da arte do diálogo. Contudo, a despeito disso, passou para
a história com o apelido de “Obscuro”. Paradoxal, não é verdade? Mas essa foi a
fama que deixou, notadamente por causa do seu livro mais conhecido, “Sobre a
natureza”, escrito num estilo nada claro, ambíguo até, próximo a sentenças
oraculares, que permitiam múltiplas interpretações. Entre tantas de suas
citações, a mais conhecida e repetida nos últimos 26 séculos é: “Nunca as águas
de um rio são as mesmas”. O foco central do seu pensamento é a constatação de
que tudo é movimento e que nada pode permanecer estático.
Como se vê, a tese, defendida por Catâneo, tinha
tudo para ser a vencedora, dada, inclusive, a maior popularidade de Demócrito
junto à elite pensante daquele tempo. Mas Vieira era um gênio. Com a eloqüência
que o caracterizava, e que fez dele, sem favor nenhum, se não o maior (para mim
é) um dos maiores oradores sacros de todos os tempos, demoliu, um a um, os
argumentos do oponente e convenceu a platéia que a tese do choro era a correta.
E, de fato, há muitas misérias (e põe muitas nisso!)
que não são ignorâncias. São ditadas pelas circunstâncias e única e
exclusivamente por estas. Não são, portanto, risíveis, mas dignas de pranto.
Ademais, é uma generalização sem sentido (que por não ser obviamente
verdadeira, descamba para a estupidez) afirmar que “todas” as coisas humanas
são ignorâncias. Afinal, Demócrito se referia à única criatura racional
conhecida no universo. Àquela que, com o poder do raciocínio e a força da
imaginação, supera sua pequenez e efemeridade e desvenda, um a um, os
potencialmente indevassáveis segredos do cosmo. À que criou desde a linguagem
inteligível com que se comunica com os semelhantes, ao alfabeto, à filosofia,
às artes, à ciência etc.etc.etc.
Em contrapartida, não há ignorância que não seja
miséria. Ela é que é o “inimigo” a ser combatido e vencido, com a “arma” do
esclarecimento. Claro que o tema é muito rico e comporta páginas e mais páginas
de argumentos e de comentários. Mas fiquemos, hoje, por aqui. Mas, como
exercício de raciocínio e reflexão, que cada qual dos leitores tente responder,
com argumentação sólida e inteligente (como fizeram Vieira e Catâneo, em 1674,
no salão da ex-rainha Cristina Alexandra) à questão: “Quem estava certo?
Demócrito, ao rir das coisas humanas ou Heráclito ao chorar as misérias que nos
assolam?
* Jornalista,
radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual
Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do
Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe,
ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova
utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Opto por rir e chorar de acordo com os fatos. No geral nem rio e nem choro. Vivo.
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