Ideologia de Orwell na
berlinda
O que mais se critica
em George Orwell, curiosamente, não é propriamente seu livro mais famoso e
conhecido, “1984, embora este tenha servido e ainda sirva de “gancho” para que
sua obra literária seja, volta e meia, trazida à baila, tantos anos após sua
morte. Foi sua alegada “inconsistência ideológica”, mesmo em se sabendo que ele
foi notório e apaixonado ativista de esquerda, que ficou para a posteridade. No
meu entender, esse procedimento é injusto. Afinal, Orwell não se limitou a
teorizar a propósito dos ideais socialistas, como tantos e tantos fizeram (e
ainda fazem). Pegou em armas em defesa de um governo de esquerda (no caso os
republicanos da Espanha), na guerra civil espanhola de 1936 a 1938, que
resultou na vitória do nazifascismo, representado pelo general Francisco
Franco. Mais do que isso, arriscou a vida em defesa do que acreditava. Tanto
que foi ferido em combate e escapou por pouco da morte. E isso é mais do que
simples paixão: é irrestrita convicção.
Os ataques, muitos sumamente
virulentos, vieram (e ainda volta e meia vêm) dos dois extremos, sem que o
polêmico escritor e ativista inglês pudesse (ou possa), por motivos óbvios, se
defender. Sobre seu livro, curiosamente, pouco se fala. Quando muito, persiste
a acusação, mais comum e recorrente, de que a superditadura que descreveu no
enredo da obra, jamais poderia ser implantada. Será que não? Já demonstrei, em
texto anterior a propósito, que isso não é tão impossível ou improvável como se
apregoa. Tomara que eu esteja equivocado. A realidade é que pouca coisa é dita
contra “1984”. O foco dos debates continua sendo seu autor.
Um de seus críticos
mais ferozes foi o historiador, ativista político comunista e jornalista judeu
polonês Isaac Deutscher. Pudera! Esse polêmico intelectual (que faleceu em 19
de agosto de 1967, em Roma) foi, simplesmente, o biógrafo de Leon Trotsky e de
Josep Stalin. E quem conhece a obra e, sobretudo, o pensamento político de
Orwell sabe o quanto ele se opôs ao stalinismo e, sobretudo, ao seu mentor,
ao perverso ditador responsável pelo
extermínio de cerca de vinte milhões de seus conterrâneos. Sequer considerava a
União Soviética um regime socialista, da maneira como entendia o socialismo. Enxergava-a
como mera ditadura, sem preocupações ideológicas específicas. Ou seja, algo um
tanto quanto parecido com a tirania do “Big Brother” de “1984”, embora jamais
tenha sugerido, ou sequer insinuado, que pensou em Stalin e no stalinismo ao
elaborar seu enredo.
Deutscher, como seria licito
de se esperar, não morria de amores por Orwell. Não se poderia, portanto,
esperar dele isenção ao analisar seu desafeto. Entre outras acusações que fez
ao adversário, a mais grave foi a de que ele plagiou o romance “Nós”, do russo
Eugene Zamyatin, a quem igualmente abominava. Ocorre que esse escritor,
perseguido pelo regime de Stalin, exilou-se na França, de onde não poupou
denúncias ao ditador soviético. Embora não haja a mínima prova, ou mesmo o mais
reles indício de que Orwell tenha, mesmo, plagiado o citado livro, muita gente
ainda acredita nessa acusação de Deutscher e a repete, como papagaio. Como se
vê, os adversários ideológicos do autor de “1984” não o poupam, mesmo passados
mais de 64 anos da sua morte.
Uns, acusam-no de
plagiador. Outros, de ter sido delator de intelectuais comunistas, em uma época
em que ter essa convicção ideológica era algo sumamente perigoso, notadamente
no auge da chamada Guerra Fria. Orwell, porém, não foi nem uma coisa e nem
outra. Nem plagiou livro algum e nem delatou comunistas. A lista que elaborou
(e o fez de fato) foi feita a título de irresponsável brincadeira com amigos
embora, não se saiba como, acabou parando em mãos indevidas, no caso, o
Departamento de Pesquisa de Informações (IRD) do Ministério de Relações
Exteriores da Inglaterra. Ele tinha uma idéia de socialismo que, talvez, fosse
um tanto romântica, sabe-se lá. Associava-o à democracia, embora seus
adversários considerem ambas coisas incompatíveis.
Os defensores de Orwell
argumentam que vários países da Europa contavam e contam com governantes socialistas,
todos eleitos pelo voto direto e que, portanto, são democráticos. Ao que seus
adversários contrapõem afirmando que esses líderes podem até ter essa ideologia.
Mas que as sociedades nacionais que governam não são socialistas. Em
contrapartida, a China, embora tida e havida como paradigma do socialismo, não
pode ser considerada, nem mesmo forçando a barra, “democrática”. É verdade que
se trata de um regime de esquerda sui gêneris. Afinal, adotou uma economia de
mercado, que fez com que progredisse e continue progredindo de forma notável.
Seu regime, do ponto de vista político, todavia, não tem nada que lembre,
sequer remotamente, mesmo que um arremedo de democracia. Fazer oposição, ali, é
crime, não raro punido até com pena de morte. Todavia, economicamente, é o
mercado que dita as regras de suas empresas, a maioria privadas.
O que será que Orwell
pensaria da China contemporânea? Suponho que se oporia a ela, a despeito da sua
economia ser “capitalista”, como a dos países democráticos. Certamente seu “socialismo”
é incompatível com o que ele sonhou. Seu ideal seria factível? Para seus
críticos, tanto de esquerda quanto de direita, não. Para Deutscher, faltava-lhe,
sobretudo, “senso histórico e compreensão psicológica da vida política”.
Faltavam mesmo? É mister que se destaque que, passados mais de 64 anos de sua
morte (ocorrida, em Londres, em 21 de janeiro de 1950), suas críticas, tanto ao
stalinismo (ou seja, ao totalitarismo de esquerda), quanto ao nazifascismo, de
extremíssima direita, permanecem coerentes e, portanto, válidas. Dedico tanto
espaço a esse aspecto por ser o que mais se comenta quando o nome de Orwell vem
à baila, seja em que contexto for. É, portanto, análise pertinente e que se
impõe.
Boa leitura.
O Editor
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Vamos lendo e aprendendo.
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