Ele passou a mão na bunda da Caetana
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Quando
eu morrer / Não quero choro nem vela...
Não
quero flores / Nem coroa com espinho /
Só
quero choro de flauta / Violão e cavaquinho.
(Noel
Rosa)
Lá no sertão da
Paraíba, a morte é do sexo feminino e se chama Caetana, escreveu Ariano
Suassuna:
- Aliás, o único jeito
de eu aceitar essa maldita é se ela vier como uma mulher bonita e carinhosa.
Ela veio. Recentemente.
Levou o próprio Ariano e outras pessoas, tudo gente fina, algumas de projeção
nacional como Rubem Alves e João Ubaldo, outras amadas intensamente, embora em
âmbito mais restrito, como o sábio tukano Manoel Moura e o engenheiro
amazonense José Geraldo, que não resistiu e passou a mão na bunda dela,
desmoralizando-a como fazem os mexicanos com La Catrina.
Foi assim: o nosso
herói José Geraldo Bessa (1953-2014), conhecido como Djewry Power, nascido no
Bairro de São Jorge, em Manaus, depois de quarenta dias num hospital, foi
cremado no Parque da Colina, em Niterói, nesta quinta-feira, 7 de agosto,
numa festa do arromba. Teve tudo:
música profana, como Meu carro é
vermelho do Tremendão, no lugar do Requiem de Mozart e até o hino do Botafogo.
Só faltou mesmo a mulata do Noel Rosa sapateando no caixão, mas a ausência foi
justificada no convite à cerimônia fúnebre feito por um dos filhos, Rodrigo,
que é músico:
- Aos amigos, peço que
levem seus instrumentos, eu levo meu violão. Aos parentes, aviso que vou fazer
o velório do jeito como ele pediu: uma festa com alegria, sem tristeza, fora do
padrão, do jeitinho dele e também um pouco do meu. Infelizmente não consegui a
bateria da escola de samba, como ele queria, mas acho que também eu não teria
coragem, como ele certamente teria, de causar essa polêmica.
O anti-herói
Quem é, afinal, esse
Djewry Power, que nunca usou espelho pra se pentear e foi capaz de organizar o
seu próprio velório com uma festa que deixaria os mexicanos mortos de inveja?
Teve choro - é verdade - que ninguém é de ferro, mas também muito riso, porque
de vez em quando alguém lembrava histórias do nosso herói, que morreu como
viveu: rindo de si mesmo e do mundo. Embora tenha escolhido uma vida curta e
gloriosa como os heróis gregos, na verdade foi um anti-herói; conseguiu ser aquilo
que muita gente quer ser e não pode.
Ser anti-herói não é
para qualquer um. Tem que ter muito borogodó, muito carisma ou nascer de novo
para ser o reverso de uma vida prosaica e ordeira, enquadrada no establishment.
Ele era um palhaço transgressor, embriagado da poesia que levava para o
picadeiro. Nas festas familiares, o espetáculo era ele. Quando chegava,
tornava-se o centro das atenções. Não tinha pra mais ninguém. Era logo cercado
pela sobrinhada, que se divertia com suas traquinagens, loucuras, sacanagens e
seus palavrões que fluíam com tanta pureza e espontaneidade. São muitas as
histórias.
Há anos, uma sobrinha
de Manaus veio a Niterói com o noivo e numa festa familiar, apresenta-o ao tio
que, de cara séria e amarrada, começa a interrogá-lo: quais suas intenções,
estudos, bairro, trabalho, de que família era. Quando o rapaz, alarmado com o
interrogatório, sem suspeitar da farsa, falou que sua mãe se chamava Raquel,
Djewry lembrou de uma colega no curso de inglês, em Manaus, em 1970, que tinha
esse nome. O noivo, feliz por estabelecer uma ponte, confirma que a mãe havia
efetivamente estudado inglês nessa época.
- No ICBEU? Raquel ou
Rachel? - perguntou Djwerry.
- É, no ICBEU. Rachel.
- Então - disse Djewry
carrancudo - só tem casamento depois de um exame de DNA. Você pode ser meu
filho. I fucked several times a senhora sua mãe - jurou num padrão que
Alexandre Nero usa agora na novela Império.
Uma de suas diversões
era aterrorizar os namorados das sobrinhas, que antes de apresentados eram
advertidos sobre o humor do tio. Ainda assim, o bicho pegava. Uma delas,
namoradeira, ouviu-o dizer a um ficante:
- Como é mesmo teu
nome? Sicrano, Beltrano, Fulano ou Herculano?
Quando o tal do
Herculano ia abrir a boca, Djewry dispensou o rapaz:
- Phoda-se, bicho. Não
precisa dizer. Amanhã vai ser outro namorado e não vou perder meu tempo
decorando teu nome.
No universo familiar,
ele desempenhou a função de coesão, cingindo a tessitura dos laços afetivos,
fazendo sempre o contraponto de negar o instituído, provocando os arrogantes e
audaciosos e defendendo quem estava por baixo. Era sempre "do
contra", mas com sentido.
Sobrinhos do
Capitão
O velório não
surpreendeu seus amigos de Manaus, que lembram as cumplicidades na molecagem. O
Tracajá - esse era seu apelido no bairro - aprontou muitas em parceria com o
hoje historiador Geraldo Sá Peixoto. Na Escola Técnica Federal do Amazonas,
onde era conhecido como Catatau, ele e Simão Pessoa, ex-poeteiro e cronista, em
plena ditadura, infernizaram a vida do professor de educação moral e cívica,
editando um jornal anarquista que pregava o amor livre e denunciava a
virgindade como uma doença, conforme o próprio Simão conta no seu blog.
Com problemas
vasculares e uma pancreatite, foi internado na unidade semi-intensiva do
Hospital São José, em Botafogo, onde fui visitá-lo duas semanas antes de sua
morte. Quando entramos, ele já entubado, disse ao enfermeiro, apontando a
cunhada viúva que nos acompanhava:
- Essa daí é a
"outra", que te falei. É meu caso.
Quando deu entrada no
hospital, a atendente, uma morena bonita que preencheu a ficha perguntou: -
estado civil? A família só verificou a resposta que ele deu na hora de fazer os
trâmites para a cremação. Lá estava: solteiro. De pura gozação. Era casado e
muito bem casado com Tânia Maria Andrade, numa relação amorosa duradoura, com
quem teve três filhos - Rodrigo, Daniel e Geraldo Jr. e dois netos - Lara e
Rodriguinho. Foi pai e avô como foi tio: divertido e carinhoso.
Quando nos via juntos,
Tânia exclamava numa fingida queixa:
- Ai, meu Deus,
livrai-nos dos sobrinhos do capitão!
Os sobrinhos do capitão
eram dois irmãos gêmeos - Hans e Fritz - cujas histórias apareciam num gibi dos
anos 1950-60, e que serviram de inspiração ao cartunista Angeli, criador da
tira "Os Skrotinhos". Eles infernizavam a vida dos adultos, entre
eles o Capitão - um marinheiro aposentado gordo e de barba negra e o Coronel -
um bedel que perseguia os alunos que matavam aulas. Os dois meninos viviam em
luta permanente contra a autoridade escolar e administrativa e contra todo tipo de poder.
Os dois Skrotinhos
armavam juntos, em cumplicidade. Não era o caso aqui. Na verdade, o Hans de
Niterói era apenas macaca de auditório do Fritz, a quem aplaudia e festejava as
bravatas, marcadas pelo humor e a irreverência, que desconstrói o sagrado e
questiona o estabelecido. O êxito dele no picadeiro era esse, essa era sua
forma transitiva de amar. Adorava os aplausos. Vai fazer muita falta, mas será
sempre o objeto de nossas memórias e a gente vai rir à bessa, lembrando de suas
histórias que serão editadas em livro. Cada risada será a eterna presença dele
nas cumplicidades que nos mantém ligados por algum DNA.
Fritz se foi e numa
última gozação com a Caetana fez um selfie todo entubado. O circo ficou sem o
seu palhaço. Hans virou um avião sem asa, fogueira sem brasa, queijo sem
goiabada, Buchecha sem Claudinho. Hans precisa acreditar na alisada de bunda da
Caetana para matar essa vontade danada de chorar de saudades.
* Jornalista
e historiador
Que linda despedida. Uma doce dor de saudade.
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