Amizade
espiritual
* Por Pedro J. Bondaczuk
A
amizade é, antes de um sentimento, uma virtude, um comportamento e um exercício
constante. Prova-se na prática: nos atos, nos gestos e nos procedimentos. Nem
todos que a apregoam de fato a têm. Ao contrário do amor, a amizade dispensa
juramentos. Sabemos, até por instinto, quem é nosso amigo e quem não é.
Não
são necessários atos grandiosos, dramáticos ou espalhafatosos para a sua
manifestação. Manifesta-se, não raro, por pequenos, mas significativos gestos de
solidariedade, por palavras certas nos momentos adequados e até por críticas e
admoestações, quando estas se fazem necessárias.
As
amizades consolidadas extrapolam, até, o campo do mero sentimento. Apresentam
inúmeras vantagens práticas, embora não seja esse o aspecto que temos em mente
quando buscamos um amigo. Este nos dá segurança, estímulo, apoio, além de nos
inspirar, equilibrar, corrigir, aplaudir, criticar e extrair de nós o nosso
verdadeiro potencial.
Ressalte-se
que amizade, coleguismo e companheirismo, ao contrário do que pensam os
desavisados, não são sinônimos e,
portanto, são condições muito diferentes. Colegas nos são impostos pelas
circunstâncias, pela convivência (às vezes forçada) no trabalho, escola, locais
de lazer etc. Podem, claro, com o tempo, se tornar amigos. Mas podem, também,
se transformar em nossos mais ferozes inimigos.
Já
para sermos companheiros de alguém, não precisamos sequer conhecê-lo. Os que
fazem uma viagem (de ônibus, avião ou navio), por exemplo, convivem, durante o
trajeto, com a companhia de dezenas de pessoas, das quais não sabem
absolutamente nada. Mas o amigo é fruto de escolha: consciente e racional. É
precioso demais para ser confundido com um simples colega ou com fortuito
companheiro.
Na
escolha das amizades, a qualidade deve prevalecer sobre a quantidade. Se
pudermos contar com muitos amigos, que de fato honrem essa condição, tanto
melhor. Essa, aliás, é minha grande ambição. Ou seja, como diz a letra de
consagrada composição interpretada por Roberto Carlos: “Eu quero ter um milhão
de amigos!”.
Aliás,
um só não, mas vários milhões, bilhões, tantos quantos conseguir. Mas se isso
for impossível (e me parece que é), me contentarei com um punhado deles, desde
que leais, fiéis e onipresentes. Não há critério infalível que nos permita essa
escolha. A maioria das amizades é meramente casual. Mas algumas chegam a ser
imortais.
Meus
grandes amigos, já falecidos, não morreram, mas permanecem onipresentes nas
minhas lembranças, conversas e leituras. Posso dizer isso, com absoluta
convicção, em relação a Mauro Sampaio, por exemplo. Ouço-o quando leio os seus
vários livros, e os de seu pai – o até lendário professor de Português dos
colégios de Campinas, Benedito Sampaio – que ele, generosamente me doou.
O
mesmo ocorre com o jornalista Maurício de Moraes, companheiro de tantas
jornadas na redação do “Correio Popular” e na Academia Campinense de Letras,
que ele tanto se empenhou que me acolhesse como um de seus membros. E com inúmeros
outros intelectuais, que marcaram a minha vida de forma indelével e cuja
presença espiritual segue guiando os meus passos, me inspirando, aplaudindo,
censurando, elogiando, criticando e corrigindo, dependendo da circunstância em
que me envolva.
Émile
Zola afirmou, a esse propósito, em relação a Gustave Flaubert (citado no livro
“Zola e seu Tempo”, de Mathew Josephson): “Há certos homens cuja amizade é tão íntima, tão
dominadora, que só podemos imaginá-los vivos, sendo impossível imaginar-se que
já estejam mortos”.
Aliás, para que esse sentimento exista, sequer é
preciso que tenhamos conhecido pessoalmente essas pessoas. Vou mais longe:
podem nem ser da nossa geração, nossas contemporâneas, mas estarem separadas de
nós por séculos e séculos de distância. Minha “amizade” com os clássicos, por
exemplo, (com Virgílio, Cícero, Catão, Píndaro, Horácio etc.etc.etc.) é “dominadora”
a esse ponto.
O mesmo ocorre com o maior estilista de língua
portuguesa de todos os tempos, o padre Antônio Vieira. Ou com Fernando Pessoa.
Ou com Eça de Qujeiroz. Ou com Machado de Assis. Ou com Mário Quintana, Cecília
Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira. Ou
com os russos Fedor Dostoievski, Máximo Gorki, Anton Tchekov, Nicolai Gogol e
Vladimir Maiakowski. Ou com os franceses Victor Hugo, Émile Zola, Gustave
Flaubert e Alphonse de Lamartine entre tantos outros. Ou do argentino Jorge
Luís Borges. Ou do mexicano Octávio Paz. Ou do colombiano Gabriel Garcia
Márquez. Ou dos chilenos Gabriela Mistral e Pablo Neruda. Ou do peruano Mário Vargas
Llosa...
Como se vê, posso não ter “milhões de amigos”,
conforme minha ambiciosa pretensão, mas estes já passam de alguns milhares, o
que não é nada mau, convenhamos. E, parodiando Zola, sua “amizade é tão íntima,
tão dominadora, tão onipresente” que me é impossível imaginar que estejam
mortos. Não estão! Nunca estarão!
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de
Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do
Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em
equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por
uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de
“Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Durarão por toda eternidade.
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