A bíblia
* Por
Marco Albertim
Juarez Canuto sentou-se
à beira da calçada, incorporou-se ao cenário de papéis soltos e sujos, retraços
de ossos de boi, carnes arroxeadas com moscas-varejeiras zumbindo festivas e
vorazes, num banco de feira, arremedo de açougue; afora o fartum de cebolas e
tomates com a polpa amolecida, e ainda com aparência de viço num lado ou noutro
não infectado pela podridão. O varredor, apesar de o sol já ter coberto a
pequena esplanada à frente, não começara a limpeza; se o fizesse, mesmo
juntando o que havia de refugo pelo chão, num canto, adensaria a pestilência no
ar sem vento.
As unhas de Juarez
Canuto, dos pés e das mãos, ele as deixara crescer; não que fosse indiferente à
higiene do corpo. Mas a tesourinha, ou mesmo um prosaico cortador de unhas, de
algum tempo sumiram de sua valise com os escassos apetrechos de uso pessoal;
sumiram rotas, enferrujadas, com as navalhas denteadas, cegas. Os cabelos
crescidos, crestados até pelo negrume de suas noites à luz mortiça de uma
lamparina a querosene, insurgiram-se em pontas compridas para cima, para os
lados e para trás. Também o pente sumira da valise; menos mal, porque se o
mantivesse, a pasta de gordura preta entre as cerdas, por certo destilaria
fungos da mesma cor no interior da valise.
- Canuto...!
Volgram Minerva passara
na avenida, ao lado do largo da feira, onde Juarez Canuto se imiscuíra para se
crer vivo, convencido de que se tornara um espectro; e como tal, teria que se
juntar a homens iguais a ele, espectrais e fingindo-se felizes na sobrevivência
de uma rotina miúda. Volgram Minerva não teria que falar com ele, para um não
se expor ao outro, visto que a segregação em que viviam era condição necessária
para não serem descobertos pela polícia. Mas Juarez Canuto emagrecera, e se
fundira feito um vegetal de galhos secos na feira pobre da vila operária.
Juarez Canuto
levantou-se, misturando no rosto oval, alongado, surpresa e susto. Olhou para
Volgram Minerva, logo a boca se abriu para dar lugar ao ricto de felicidade
canhestra, como de alguém que já se curvara à impossibilidade de voltar a rir
sem medo de mostrar os dentes, as gengivas sem solavancos.
Os dois abraçaram-se. A
barbicha rala e comprida, emendada com o bigode de Juarez Canuto, roçou o rosto
de Volgram Minerva. Mesmo com o bodum de chiqueiro do lugar, a morrinha de Juarez
Canuto empanou as narinas de Volgram Minerva.
- O que houve com você?
– quis saber Volgram Minerva.
A resposta de Juarez
Canuto foi um choro miúdo, igual a sua vida, inda que com uma fundura densa de
dor. A pergunta fora inoportuna. A feição do amigo, junto com a indumentária
estropiada, não dava lugar para indagações.
O encontro dos dois,
Volgram Minerva comunicou a Cenira Maia, na noite do dia seguinte.
- Não me controlei.
Canuto hoje é uma lembrança mutilada do militante palavroso que conheci há dois
anos. Está tão aleijado que tem vergonha de dizer que acredita na revolução.
- Você rompeu com a
norma de segurança. Não devia se expor a ele, nem ele se expor a você. Mas numa
situação extrema, compreende-se. Ele está morando num quarto alugado; não tem
dinheiro para pagar, está desempregado e nós não temos como ajudá-lo. Você está
trabalhando. Ele vai morar com você.
Volgram Minerva e
Juarez Canuto se despediram na mesa de um boteco deserto, com dois ou três
biriteiros de cachaços curvados e pernas finas, em pé, na beira do balcão
coberto de moscas. Clandestinos, não se inquiriram sobre o endereço de moradia
de cada um. Mas os andrajos de um e a simplicidade composta de outro, davam
conta da proximidade de domicílios entre os dois.
O reencontro se deu
depois que Cenira instruíra os dois, em encontros separados, sobre como
deveriam se portar para evitar que Juarez Canuto não tivesse acesso à base de
militantes em que Volgram Minerva tinha assento.
Juarez Canuto, sem
assento em base nenhuma, caíra no torpor do pensamento lento. Não raro, sem
atinar para a militância acesa de ideias e atos de Volgram Minerva, tinha
surtos de citações bíblicas, resgatados da lembrança de quando fora garoto
evangélico, sob a influência do pai, pastor de igreja batista.
Cenira Maia recebera de
um portador a quem os dois não conheciam, um pacote de roupas enviada pela
família de Juarez Canuto. Ele vestiu-se mesmo sem ter lugar para ir. Entre o
par de sapatos e as roupas, uma bíblia. Todas as noites ele lia trechos do
Velho Testamento para Volgram Minerva.
Não demorou três meses,
e Volgram Minerva viu Canuto saindo do culto da igreja batista, com a roupa e
os sapatos novos e a bíblia debaixo do braço.
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife.
Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do
concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em
concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite,
integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”.
Tem três livros de contos e um romance.
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