O louco e o poeta
* Por
Clóvis Campêlo
A cidade do Recife
amanheceu consternada nessa segunda-feira. De madrugada, um maluco destruiu
partes da escultura do poeta Ascenso Ferreira, situada no Cais da Alfândega.
Dizem que em vida o poeta gostava de por ali passear nos fins de tarde,
admirando o por do sol por trás do Capibaribe. Em função disso, o local foi
escolhido para acolher a sua imagem.
Em qualquer cidade do
mundo, é duro ser estátua, amigos. Nos anos 60, o compositor Erasmo Carlos já
afirmava isso em uma de suas músicas. No caso do compositor paulista, o que lhe
afligia eram os pombos na cabeça e os brotos passando incólumes ao seu lado. No
caso do poeta pernambucano, o perigo veio de um louco solto pelas ruas, um
lúmpen perdido nas noites recifenses.
Mas afinal o que o
teria levado a cometer tamanha sandice? No seu delírio quixotesco de louco, a
imagem poética daquele homenzarrão às margens do rio deve ter lhe sugerido um
monstro a ser derrotado, um moinho de vento imponente a desafiar-lhe a
insanidade.
Bastou-lhe uma pedra,
um paralelepípedo proparoxítono, para enfrentar e derrotar o perigo imaginário.
E sempre haverá uma pedra no caminho, amigos, para desestabilizar a inércia da
vida ou da noite. Alguns poucos golpes e o vilão solitário desfigurou o rosto
bonachão e pacato do poeta. Depois, mirou e atingiu as suas mãos de poeta,
repletas dos versos danados e revolucionários do modernismo brasileiro. Inerte
em seu sono de pedra, só restou ao bardo aguardar em silêncio as luzes do dia
com a resignação dos feridos de morte. Mesmo desfigurado, porém, manteve-se de
pé. Afinal, feito de ferro e pedra deve ter no íntimo a certeza do
renascimento.
Ao louco vencedor, além
dos louros da vitória no combate desigual, coube a glória de atravessar solene
a ponte Maurício de Nassau, sem pedágios ou bois voadores a lhe incomodar a
insanidade noturna. Talvez visasse um outro poeta logo adiante, uma outra
imagem imponente situada sobre a ponte a contemplar eternamente os ares
poéticos do encontro dos rios.
Se era essa a sua
intenção, porém, não logrou êxito. Logo adiante foi detido por uma viatura
policial. A próxima vítima estava a salvo. O seu corpo diminuto não seria
sacrificado pela loucura gratuita do dom quixote urbano. Encerrava-se ali mais
uma tragicomédia pós-moderna. E, loucuras a parte, com certeza, entre mortos e
feridos, todos terão o direito de escapar. A imagem do poeta dos Palmares será
reconstituída e deverá caber às autoridades competentes a responsabilidade pela
proteção e tratamento adequados a serem dispensados ao meliante tresloucado.
Afinal, de poeta e de
louco todos nós temos um pouco.
* Poeta,
jornalista e radialista, blogs:
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