O complexo livro “mais
simples” de Virginia
O romance “Orlando”
(cujo título, em inglês, é “Orlando: a biography”) é considerado, por muitos,
como a obra-prima de Virgínia Woolf. Foi publicado em 1928, quando a escritora
estava com 46 anos de idade. Discordo, todavia, dessa opinião. Apresso-me,
porém, em explicar que não considero o livro ruim ou inferior ao restante da
produção dela. Muito pelo contrário. Ocorre que para se fazer tal avaliação,
que é, antes de tudo, subjetiva, é indispensável que quem a faça conheça a
totalidade da obra do escritor ou escritora cujo romance específico seja objeto
desse tipo de classificação (como é o caso). E, cá para nós, dificilmente quem
opina dessa forma tem esse capricho ou essa oportunidade. Não costumo
estabelecer esse tipo de “ranking”, até porque, cada livro tem os próprios
méritos (e talvez deméritos), motivação própria e intenções que nem o autor é
capaz de explicar. Imaginem terceiros!
“Orlando”, com toda sua
complexidade (e é complexo), é uma das produções literárias de Virgínia Woolf
mais acessível ao leitor, embora exija dele raciocínio, análise e total
concentração, para não se perder na leitura. É dos poucos livros da escritora
(não sei dizer se há outros) em que ela não recorre ao tal do “fluxo de consciência”. Essa forma de escrever merece,
pelo menos, uma explicação, por elementar que seja. Aliás, merece até mesmo um
tratado o que, evidentemente, não farei. Para não me perder em divagações e ser
minimamente objetivo, recorro à enciclopédia eletrônica Wikipédia, para guardar
um pouquinho que seja de coerência. Sou maniacamente didático, ora se sou.
“Fluxo de consciência”,
de acordo com a fonte citada, é, grosso modo, “uma técnica literária usada,
primeiramente, por Edouard Dujardin em 1888, em que se procura transcrever o
complexo processo de pensamento de um personagem, com o raciocínio lógico
entremeado com impressões pessoais momentâneas e exibindo os processos de
associação de idéias. A característica não-linear deste processo de pensamento
leva frequentemente a rupturas na sintaxe e na pontuação”. Alguns escritores
brasileiros que se utilizaram dessa técnica foram Autran Dourado, Hilda Hilst,
Clarice Lispector e João Guimarães Rosa.
Um exemplo, na obra de
Virgínia Woolf, de utilização do fluxo de consciência, é este trecho do seu
romance (transformado em filme de grande sucesso, estrelado por Nicole Kidman) “Mrs.
Dalloway”: “Como
a humanidade é louca, pensou ela ao atravessar Victoria Street. Porque só Deus
sabe porque amamos tanto isto, o concebemos assim , elevando-o, construindo-o à
nossa volta, derrubando-o, criando-o novamente a cada instante, mas até as
próprias megeras, as mendigas mais repelentes sentadas às portas (a beberem a
sua ruína) fazem o mesmo; não se podia resolver o seu caso, ela tinha a
certeza, com leis parlamentares por esta simples razão: porque amam a vida. Nos
olhos das pessoas, no movimento, no bulício e nos passos arrastados; no
burburinho e na vozearia; os carros, os automóveis, os ônibus, os caminhões,
homens-sanduíches aos encontrões, bamboleantes; bandas de música; realejos, no
estrondo e no tinido e na estranha melodia de algum aeroplano por cima das
nossas cabeças, era o que ela amava, a vida, Londres; este momento de Junho.
Porque era em meados de Junho”.
O simples
fato de Virgínia não ter utilizado esta técnica, já torna “Orlando” um dos seus
livros mais acessíveis, se não for o mais. E, ainda assim... é complexíssimo.
Imaginem os outros! Essa obra é classificada, geralmente, como “novela
semi-biográfica”. E por que? Porque se baseia em parte da vida de Vita-Sackeville
West. E quem foi essa mulher tão especial, a ponto de ser transformada em
personagem de um dos livros mais bem sucedidos da escritora inglesa? Foi mais
uma das paixões homossexuais de Virginia. Era lésbica, embora casada, como a
autora de “Orlando”. Seu biógrafo e sobrinho Quentin Bell assegura que foi
outro “amor platônico” da tia (o terceiro, conhecido, de sua vida), que como os
anteriores, nada teve a ver com sexo. Será? Bem, prefiro acreditar em seu
parente, que conviveu com ela e a conheceu como poucos.
O que
fica claro é que nossa complexa personagem tinha profunda carência afetiva,
provavelmente a raiz do seu desequilíbrio mental. O jornalista e historiador
Euler França Belém, destaca, em seu excelente ensaio (“Virginia Woolf tentou ‘curar’
sua loucura pelo suicídio”) publicado na Revista Bula: “Todo mundo que lhe dava
atenção recebia alguma esperança, de sexo ou afeto. Só que, afeto, tudo bem,
sexo, nada”. “Orlando” é seu único livro em que expressa, de uma maneira ou de
outra, sua tendência homossexual, mesmo que não levada à prática. O livro,
considerado importantíssimo no estudo de gêneros, a exemplo de “Mrs. Dalloway”,
também ganhou versão cinematográfica. Não foi, lá, um filme tão conhecido, mas
quem o assistiu fala, geralmente, bem dele. Infelizmente, não o assisti. Por
isso, só posso fiar-me na opinião alheia. Essa produção cinematográfica data de
1992 e foi estrelada pela atriz Tilda Swinton. A rainha Elizabeth I, personagem
onipresente no enredo, foi vivida por Quentin Crisp; Como se observa, são
estrelas relativamente desconhecidas no mundo do cinema.
A vida e
a obra de Virginia Woolf são tão complexas, que eu pretendia tratar delas em um
único texto, mas já escrevi o equivalente a quase um livro, mesmo fazendo
abordagem elementaríssima e superficial. E olhem que ainda não esgotei sequer a
metade do que considero essencial a tratar. Só não entendo porque tão poucos
especialistas em Literatura se debruçaram sobre essa complexa e contraditória
figura, que oscilou, nos seus 59 anos de vida, o tempo todo, entre a
genialidade e a loucura. Espero que o leitor esteja apreciando tanto esta série
de comentários como estou “amando” em redigi-los.
Boa
leitura.
O Editor
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk.
Gosto de ler sobre ela, mas ainda estou sem coragem de enfrentar os livros.
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