Companheiro
em todas as horas
* Por Gustavo do Carmo
Zulmira teve dois filhos e um
casamento necrosado de trinta e cinco anos. Viveu aparentemente feliz durante a
infância deles, Silvana e Geraldo. Talvez fosse para esconder o seu sofrimento
conjugal. O ex-marido Aldair sempre foi e ainda é um ótimo pai para os filhos.
Nunca faltou com carinho e amor.
Aldair também sempre foi um ótimo
genro, cunhado, tio e primo para a família de Zulmira. Só não foi um bom
marido. Não que ele agredisse a esposa, até porque isso ele nunca fez. Mas
Aldair nunca deu atenção à mulher com quem foi casado por três décadas e meia. O
casamento já nasceu praticamente morto. Morreu clinicamente já na lua-de-mel.
Silvana e Geraldo nasceram de alguns suspiros.
Logo aos seis meses de casamento,
Zulmira começou a desconfiar que o marido tinha uma amante. Aldair dava margem
quando chegava em casa apenas no dia seguinte. Este dizia que estava
trabalhando e que Zulmira era muito ciumenta. Mas ela tinha certeza que ele
tinha outra. Durante quinze anos, a desconfiança era a mesma. Só mudava a fulana
de acordo com a época. Por isso, Zulmira passou anos sofrendo em silêncio para
passar uma imagem de felicidade para os filhos.
As crianças já desconfiavam. Costumavam
flagrar a mãe chorando ou o pai dormindo na sala. Principalmente Silvana, a
mais velha. Quando tinha quatorze anos, junto com Geraldo, três anos mais novo,
redescobriu a fita cassete que gravaram quando eram bebês. Ouviram, junto com
as suas primeiras palavras, a lamentação da mãe, discutindo com o pai. Zulmira dizia
que a filha quando crescesse iria acompanhar a mãe em todos os lugares e seria
a sua companheira em todas as horas.
A farsa acabou quando Geraldo
completou quinze anos. Ficou sem chão. Não chorou nem reagiu com tranqüilidade.
Zulmira e Silvana fizeram um escândalo. Zulmira achou um bilhete de amor e um
barbante para medir o dedo da amante, sua melhor amiga e mãe dos amigos gêmeos
de Geraldo. Passados alguns anos, todos
se acostumaram com a traição de Aldair. Só não aceitaram a amante.
Silvana começou a namorar. Passou
a dar mais atenção ao namorado do que à Zulmira. Depois Silvana se casou e foi
morar em Petrópolis.
Passou a visitar a mãe somente uma vez por mês. Dois anos
depois, Aldair foi morar com a outra mulher. Finalmente o casamento acabou.
Teve coragem de se divorciar.
Não fosse por Geraldo, ficaria
sozinha. Passava todos os finais de semana suspirando de tanto reclamar do
abandono da filha e do marido. Dizia ao filho mais novo que ele era o seu
companheiro. Mas não deixava de recomendar para que ele não se prendesse a mãe.
Desempregado, solteiro e até um pouco preguiçoso, Geraldo acabou se tornando a
única companhia da mãe. Zulmira acertou a profecia que fez quando Silvana ainda
era um bebê que balbuciava as primeiras palavras. Só errou o filho.
Um dia, Geraldo finalmente
arrumou uma namorada. Zulmira se desesperou. Ficaria totalmente sozinha. Mas
não queria atrapalhar a felicidade do filho. Mais uma vez. Geraldo recusara uma
oportunidade de emprego em
Porto Alegre porque não queria deixar a mãe sozinha.
Continuou morando com ela. Continuou desempregado.
Geraldo acabou arrumando emprego
no Rio mesmo. E como publicitário, como sempre sonhou. Deixou de almoçar em
casa, como sempre fazia. Dona Zulmira só não deixou de fazer comida porque o
filho fazia questão de jantar em casa. Geraldo conheceu Graciane na agência.
Às vezes, Geraldo precisava
trabalhar na sexta-feira à noite. Só chegava em casa no sábado de manhã.
Zulmira suspirava: “Fiquei mesmo sozinha. Primeiro o Aldair. Depois a Silvana.
Agora o Geraldo também”.
O trabalho realmente não podia
esperar. Já Graciane, sim. Ela teve que se adaptar à preocupação de Geraldo com
a mãe. Só saía com a namorada uma vez por mês. Não que ele quisesse fugir da irmã,
mas aproveitava o dia de sua visita para não deixar a mãe sozinha. Graciane,
com certeza, odiava. Nas demais semanas, o programa era em casa nas
sextas-feiras. Aos sábados, chamava até o pai para fazer companhia à ex-mulher.
Quando seu Aldair não podia, tentava uma amiga da mãe. Quando tinha que deixar
a mãe sozinha, ligava de hora em hora. Graciane detestava.
Graciane adorava a sogra. Mas
odiava a preocupação obsessiva de Geraldo com a mãe. Dona Zulmira adorava a
nora. Mas ficava com ciúme quando o filho dava mais atenção à namorada.
Disfarçava puxando conversa.
Um dia, Graciane perdeu a
paciência e deu um ultimato a Geraldo. Ou ele parava de se preocupar em deixar
a mãe sozinha ou ela terminava o namoro. Geraldo preferiu a mãe. Graciane
terminou o namoro.
Passado um ano, reataram.
Acabaram se casando. Mesmo assim, Geraldo não saiu de casa. Foi morar com a
esposa... E a mãe, Dona Zulmira.
Geraldo nunca abandonou a mãe.
Voltou a dar mais atenção a ela quando Graciane morreu atropelada, saindo apressada
da casa do amante. Geraldo continuou sendo o companheiro de Dona Zulmira em
todas as horas.
* Jornalista
e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias
que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos -
Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores
Nenhum comentário:
Postar um comentário