terça-feira, 13 de maio de 2014

Amor sem síncope

* Por Rubem Costa


Rosa de amor que me deu à vida.
Rosa de vida que me deu amor.

 Manifestação espontânea do ser, o amor surge e caminha independente de nossa vontade. O seu poder  é dado conhecer já no nicho escuro do ventre materno. O feto, enquanto espera aconchegado no útero, recebe as emanações emocionais que vêm da mãe. Percebe e assimila. Até a fala, diz a ciência , repercute no ser em gestação, cujo cérebro está pronto a recepcionar a linguagem afetiva de um  idioma.

Se assim é, se no esconso em que se deita, pode o embrião receber o eco de muitas falas, com mais razão se há de imaginá-lo a acumular as vibrações mais profundas que partem da ternura daquela que lhe dá forma corpórea onde a vida repousa.Lucas, o evangelista, conta a história de Isabel, (a que foi fecundada na velhice) que, gestante de seis meses, ao receber a visita de Maria, dá vazão a toda sua emoção, exclamando: -“Ao chegar aos meus ouvidos a tua saudação, a criancinha saltou alegre no meu ventre". -  É dessa forma que se manifesta o mais puro dos aprendizados, a querença espontânea destituída de egoísmo. E esse amor, que vem da essência do homem, capaz de doar e imolar-se, é a força interior que gera o perdão, expressão esplêndida da alma que leva à remissão.

A criança nasce encharcada de amor materno, que é mais forte e ardente que o paterno. Eis que o pai pode ser tido, numa concepção poética, como o jardineiro que lança na terra a semente e cuida para que cresça, mas a  mãe é árvore que suga do solo a seiva que percorrendo o tronco, se abre em corola e se transforma em fruto. Por isso, é um amor fiel à sua própria vocação de eternidade. Não desfalece, nem se cansa. Caminha no tempo como guarda-chuva de proteção nas intempéries e bengala de arrimo nas veredas pedregosos. É um todo permanente, não tem sincope, porque vive de uma interação constante entre a alma que se aflige e o sonho de felicidade ao filho que se afasta. Esse poder imanente do amor materno, quem o traduz, com rara felicidade, é Roberto do Vale, escritor e jornalista, quando recorda que " as mães guardam segredos imemoriais, a gente sequer os vislumbra. Quando muito se percebe sinal rapidíssimo, em certos momentos, oscilando no brilho dos olhos delas, que logo nos escapa: fugaz brincadeira dê natureza que quer intocável esse grave mistério: o mistério do ser que gera o ser. Necessária, generosa, fecunda. Dona da perpetuação do gênero. É mais que um conceito: é uma vivência ". Não importa que o mesmo Roberto do Valle, em contrapartida, filosofe a seguir, lembrando que, "no contexto, ela assume, também, outros papéis não é possível ser mãe o tempo todo. Por isso, diz ele, "acontecem mães também absurdas ou frívolas, também banais, ou azedas, ou ásperas, tocadas pelos vírus do circuito ". Não importa que assim diga, porque, ao final, imperativo, adverte: "Mas seu valor essencial permanece, mesmo num mundo que pulveriza valores ".

É uma visão justa que resguarda essa fonte inesgotável que vem da origem do mundo e se projeta para as linhas do infinito. Em sua unicidade é múltipla. x começo, mas não tem fím. Só por ela preexiste a eternidade da vida humana e a grandeza do ser.

E o amor de filho? Não. O amor do filho é sazonal. Emerge na infância com a força da ligação umbilical que o manteve atado e alimentado no aconchego do útero materno. Respira fundo o sopro da proteção até que, na juventude - ave que se empluma - começa, gaivota, a ensaiar o vôo livre que torna entendível o brocardo popular quando diz que uma mãe é para dez filhos, mas dez filhos não são para uma mãe.

Não é um mal. É a lei da vida. É o homem que abandona pai e mãe para multiplicar-se. E renovar-se, transportando para a descendência a mesma forma de afeto e de amor que recebera, antes, dos ancestrais. Mas no fundo, na aparência irresponsável do moço, dormita o afeto que, atravessando as intempéries da vida, um dia de novo rebenta no peito do homem adulto, trazendo do fundo da memória a ternura de uma saga, a história de um menino acalentado ao morno colo da mãe. Ninguém, como Mauro Sampaio, foi capaz de traduzir tão bem esse retomo do coração maduro ao tempo criança: - Rasquei teu ventre! /(Fui tropeço no teu caminho) Tirei de tua necessidade! /Fui apreensão na tua mesa) /Dividi tuas noites ao meio!/ (Fui insônia de tuas noites) /Me envolveste com tuas canseiras! / (Fui canseira de teus dias/ Tuas lágrimas me carregaram!/ (Fui teu gemido, não teu lamento) Tranquei as noites de teus amores!/ (Fui tua noite de descompasso)/ Neguei teu sangue, ó minha mãe! - Que mais eu posso?

É assim que o poeta sente, é assim que o poeta fala, é assim que o poeta vê o que sentimos sem saber falar. O amor, em síntese, é o mesmo. O da mãe é transbordante, um constante repartir, como diz, ainda, o mesmo Mauro Sampaio:

         "Tuas mãos bem retratam tua vida! Doze filhos, doze apreensões,/Doze roupas
           para teu tanque,/ Doze bocas para tua mesa/Doze insônias para tuas noites de  
          doze sobressaltos".

O amor do filho é mais egoísta, porque deixa para traz a infância e caminha para frente de olhos fitos no futuro, na busca de sua própria existência  que irá a se projetar na vida dos que dele advirão. Depois a cena se repete. O filho se torna pai. A filha se torna mãe. Até que um dia, - ah, um dia! - sem que saibam ou percebam, brota-lhes no coração , transvestido de saudade, o amor que ficou esquecido. É nesse instante que, insensivelmente, descobrem, escondido nas rugas do rosto, o amor que, hibernando, caminhava no tempo. É o mesmo Mauro Sampaio que assim traduz o remorso da quase indiferença dos filhos:

        -“ Hoje,  quero sentir que não morreste. Desejo estar contigo, simplesmente,  
            Debruçar-me sobre tuas mãos E te pedir a benção. Contemplar-te avidamente! “

* Escritor e membro da Academia Campinense de Letras.



Nenhum comentário:

Postar um comentário