“Jesus, causa mortis”
* Por Mara Narciso
Ver o noticiário na hora das refeições
é contrasenso, devido aos engulhos sentidos quando vemos tamanha iniquidade. O
ser humano especializou-se em humilhar, torturar, causar a dor a seu
semelhante, impingindo-lhe todos os sofrimentos antes do tiro de misericórdia.
Quando achamos ter visto todas as modalidades, novas práticas aparecem,
especialmente contra crianças e velhos. A norma é, para que apenas roubar se
posso estuprar e torturar até a morte? Por outro lado, há quem diga
que nunca foi tão seguro viver quanto agora. A civilização atingiu seu ápice de
segurança, pois noutros tempos o barbarismo selvagem era a lei.
Manoel Hygino dos Santos diz, ao final
do seu magnífico livro “Jesus, causa mortis” que nada acrescentou a história.
Debruçado sobre documentos, reviveu os últimos momentos de Cristo sobre a
Terra. Embora cristã e agnóstica confessa (incoerência?), fiquei apaixonada
pelo livro e por Jesus. Os evangelhos sobre Cristo foram escritos, segundo o
autor, mais de 50 anos após sua morte, e cada um traz uma versão diferente dos
seus momentos finais. Menciona que Ele esteve por seis anos na Índia, fala da
sua volta a Israel aos 29 anos quando começou a pregação, e tenta desvendar os
motivos de os judeus, sob o domínio dos romanos, terem levado o Messias a
julgamento, condenação e morte.
Em cima de documentação e argumentos
críveis, Manoel Hygino disseca a História, buscando não misturar crença e
realidade, em busca do homem que mudou o calendário ocidental. São
despretensiosas 63 páginas de documentos, boa argumentação e fuga de paixões. A
fé do autor raramente é deixada transparecer. Analisa os costumes da época,
inclusive a frequência comum do nome Jesus. Procura desvendar os motivos de Ele
ter sido levado a julgamento, e faz as citações do lavramento da sentença. Na
época, revolucionários e salteadores assassinos eram condenados à morte por
crucificação.
De forma livre e sem ater-me às
informações exatas do autor, farei algumas considerações. Evangelhos e
documentos apócrifos ou não oficiais e não aceitos pela Igreja são citados,
tentando desvendar o emaranhado de porquês. O mais crível é que o motivo da
prisão seria a possibilidade de Jesus abalar o governo oficial ao se declarar
Rei, embora dissesse que o seu reino não era dessa terra. A
sua entrada em Jerusalém, montado num jumento sob aplausos, desencadeou o
processo de julgamento. Tido como ameaça, foi declarado culpado pela multidão.
Pôncio Pilatos lavou as mãos, após tentar trocar Cristo por Barrabás.
Condenado, Jesus é flagelado com
chicotadas nas costas, flagelo este cujas pontas tinham pedras
e ossos. A dor desencadeada leva a perda de fezes e urina. Depois, por se dizer
rei, foi-lhe posta uma coroa de espinhos, que Lhe perfuraram a testa e couro
cabeludo. Devido à rica vascularização local, além da perfuração de nervos,
houve grandes sangramento e dor.
Diferente do que é representado
artisticamente, Cristo não levou a cruz, pois não é possível carregar 90
kg por oito quilômetros, distancia média entre o local do julgamento e o
da crucificação, ainda mais ferido. Levou a parte de cima, o patíbulo, que pesa 50
kg. Nessa caminhada caiu e foi ajudado. A parte vertical da cruz já estava no
local. O corpo era geralmente amarrado pelos punhos e pés, e deixado lá por
dias até o condenado morrer. A posição não permite respirar. No caso, Jesus foi
pregado na cruz por cravos que perfuraram seus pulsos, lesando o nervo mediano,
o que causa dor lancinante. Os pés foram pregados um sobre o outro, com um
cravo mais longo. Não havia suporte sob eles. Não foi pregado pelas palmas,
como costuma ser representado, pois o peso do corpo, de cerca de 70 kg,
rasgaria as extremidades e Ele cairia. A nudez total não era aceita,
mas suas vestes foram retiradas. Para se certificar da morte, um soldado
perfurou o seu tórax da direita para a esquerda, vazando seu coração na altura
do átrio direito, de onde saiu água e sangue. Havendo circulação, Cristo ainda
estaria vivo. Para abreviar o suplício, as pernas dos condenados eram quebradas
a pauladas. Tal não acontedeu aqui.
Segundo as Sagradas Escrituras, no
momento da morte, ocorrida na época da Páscoa, houve terremoto e escuridão. O
corpo era abandonado para ser comido por abutres e cães. Amigos de Jesus
conseguiram autorização - outro ponto polêmico -, para recolherem o corpo e o
levarem a tumba. No terceiro dia, apenas os panos com os quais fora envolto
estavam lá.
A análise do Santo Sudário, linho com o
qual o corpo de Jesus teria sido embrulhado após sua morte, ao ser datado pelo
carbono 14 mostrou tratar-se de tecido feito em torno de 1300, ou seja, fora da
época de Cristo. Ainda assim, a Igreja o considera relíquia, pois traz impresso
em seus fios em três dimensões a imagem de um homem que foi crucificado. A
ciência ainda não deu sua palavra final, e a busca da face de Cristo e das suas
características físicas continua.
A morte em si pode ter sido por asfixia
ou hipovolemia, descartando-se a possibilidade de infarto. “Jesus, causa
mortis”, de Manoel Hygino, autor sagaz e criterioso, desperta para o tema. Se
não há corpo não há crime. De acordo com a Fé, Cristo subiu aos céus de corpo e
alma, deixando o amor como ensinamento. Então, medindo a dor que os
torturadores impingiram a Ele, a História está indo ou voltando? A crueldade
faz a gente chorar.
*Médica
endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de
Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora
do livro “Segurando a Hiperatividade”
Mais uma ótima resenha, sobre um assunto apaixonante e longe de esgotar-se. Muito bom, Mara!
ResponderExcluirA nossa maldade chega a nos assustar. Até que ponto a civilização consegue segurar a nossa alma perversa?
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