As
Clarissas da minha vida
* Por Urda Alice Klueger
Nem sei por onde começar. Talvez por um dia luminoso de março, meu
primeiro dia de aula de português no primeiro ano ginasial, onde o bom e velho
professor Trierweiler deu como tarefa de casa escrever uma redação chamada
“Festa de aniversário”. Fui para casa, imaginei uma festa de aniversário num
salão de chão rebrilhante, onde uma menina que aniversariava tocava um piano
envernizado e se chamava Clarissa. A
minha redação redundou na maior bronca. Recebi-a de volta com um “zero” escrito
em garrafais letras vermelhas e junto com a maior descompostura possível, dada
pelo meu bom professor, que mais tarde se tornaria meu revisor. Por que a
bronca? Porque o professor me acusava de ter copiado a redação de um livro de
Érico Veríssimo.
Nessa altura, eu ainda não sabia quem era Érico Veríssimo, e lembro como
fiquei de pé, tremendo de indignação, a dizer que não copiara a redação de
lugar algum. Clarissa fora simples coincidência. Diz o professor, até hoje, que
resolveu prestar mais atenção em mim – por enquanto, tirou o zero, botou um
dez.
Claro que tratei logo de saber quem era Érico Veríssimo, e um atrás do
outro li todos os seus livros, e fiquei fã incondicional. Digo sempre, mesmo,
que ele foi um dos meus grandes mestres brasileiros, junto com Jorge Amado
(Muitos outros também foram meus mestres, mas estrangeiros).
Daí um dia, que acabo de descobrir agora que foi em 1975, eu estava
viajando num carro de um amigo numa distante estrada, e deu no rádio do carro
que Érico Veríssimo partira. Gente, como doeu! Eu não podia crer que uma pessoa
que escrevia livros como “Clarissa”, ou “O tempo e o vento” não pudessem ser
imortais. Doeu tanto quanto perder um tio, um pai. Meu mestre se fora
irremediavelmente. Deixara-me Clarissa, porém, e todas as suas outras
histórias.
A vida correu. A vida às vezes toma rumos que a gente não espera. Um
dia, uma das netas de Érico Veríssimo morou um ano em Moçambique, país onde
tenho parte da minha família, e a minha gente ficou amiga dela, e da irmã dela,
e da mãe dela, que lá tinham ido passar férias. Foi amizade mesmo, coisa assim
de minha sobrinha ir para Paris e ficar hospedada na casa dos Veríssimos lá, e
depois ir a Porto Alegre e fazer o mesmo – quando ela foi a Porto Alegre eu
dizia: “Querida, por favor, me telefona de lá, eu quero pelo menos ouvir o som
da casa dos Veríssimos!”. Ela não só me telefonou como me botou a falar com D.
Mafalda, a viúva do meu ídolo, e D. Mafalda acabou por me mandar um livro do
falecido marido com dedicatória dela. Eu quase que desmaiei de emoção!
Então, na semana passada, o jornal trouxe uma matéria sobre os 90 anos
da Dona Mafalda, com fotos dela e tudo. Fiquei olhando para o jornal como uma
boba. – aquela mulher que o jornal contava
maravilhosa e que eu sabia que era estava ali, em fotografia, e numa
segunda foto trazia no colo, junto com o marido, os filhos Luiz Fernando e...
Clarissa! Daí descobri onde o meu grande mestre buscara o nome da sua heroína!
Clarissa existia mesmo! Fiquei pensando se a menina lá do meu primeiro ano do
Ginásio, a que tivera um aniversário a tocar um piano envernizado não poderia,
talvez, ser aquela menina Clarissa que
vivia, de verdade, lá no Rio Grande do Sul!
Sei que descobri que tenho três Clarissas: a que fez o professor me dar
a bronca, a heroína dos livros do meu grande mestre, e uma menina que já deve
ser mulher madura, e que mora, segundo o jornal, nos Estados Unidos.
Parabéns, querida D. Mafalda! Obrigada por ter me dado mais uma
Clarissa!
Blumenau, 19 de
Junho de 2003
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR
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A minha paixão por Clarissa foi imediata e intensa, como aconteceu com você, Urda. E, caso tivesse uma filha, seu nome seria Clarissa. Não sabia que Érico Veríssimo tinha filha com tal nome. No prefácio falava que Clarice seria banal, ou algo assim, e por isso, grafado com dois "esses", lá estava a heroína batizada. Por acaso a imagem escolhida por Pedro foi a exata capa do livro que li aos 14 anos. Uma frase ficou gravada. Numa certa altura, visitando um paciente que tinha falecido, o médico, paixão de Clarissa, abriu as janelas e disse: "O ar aqui está irrespirável". Como esquecer?
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