Quem é o autor. E eu disse “Pronto”
* Por
Fernando Yanmar Narciso
Por volta de 1990, a famosa e controversa comédia americana Married
With Children, conhecida por aqui como Um Amor De Família,
deixou as puritanas mães ianques de cabelo em pé. Em certo episódio (de gosto
questionável) as duas famílias principais do show saíam de férias, indo para um
chalé no bosque. Ocorre que uma das mulheres perde o juízo por causa da TPM e,
a ciência deve explicar, o problema contagia todas as fêmeas da cabana, transformando-as
em quase monstros. Como se isso não fosse problema o bastante para os ditos
machos da família, eles são atocaiados na cabana por um urso faminto. Como
costumo dizer, diversão leve e saudável para toda a família...
Acontece que certa dona de casa, preocupada com a influência que tal
programa poderia ter no crescimento de seus filhos, resolveu processar a Fox,
produtora do show, pedindo ou a retirada do capítulo ou da série inteira do ar.
A batalha da mãezinha contra a emissora de TV- Perdida, afinal o programa
continuou no ar por mais sete anos- foi uma das pioneiras na tentativa do povo
de reassumir o controle de suas vidas e reavaliar os limites do que poderia ser
mostrado nas telinhas.
Já experimentou mudar de canal ou desligar a televisão”? Por décadas
essa foi a única resposta de autores e produtores à audiência pentelha. Se você
não gosta do programa, então por que continua assistindo? Esse argumento já não
funciona mais. Há alguns anos, surgiu nos Estados Unidos um incompreensível
fenômeno chamado de Hatewatching. Certos programas tornam-se
verdadeiros sucessos da noite pro dia, conquistando uma audiência fiel e
exigente. Conforme os anos passam, os autores podem perder o fio da meada e
tais programas deixam de chamar nossa atenção, tornando-se quase paródias do
que foram.
No entanto, em vez de simplesmente os abandonarem, certos fãs decidem
continuar assistindo e odiando os shows na esperança que os autores voltem a
acertar na mão, numa relação que combina nostalgia e masoquismo. Assim que o
episódio da semana termina, não tardam a entrar nos fóruns de discussão ou,
preferivelmente, no Twitter para despejar todo o veneno que puderem contra sua
“ex-série favorita”. Me arranho todo mas não largo minha gata, como diria minha
mãe.
A TV brasileira também passa por um processo semelhante. Por essas
bandas, infelizmente a “novela das oito” permanece sendo o único programa
assistível e comentado do horário nobre. Graças à internet, o telespectador
aprendeu quem deve ser o alvo das reclamações quando a história parece ter dado
um mergulho de cara no chão: Os autores. Há poucos anos, Aguinaldo Silva foi
abordado de maneira agressiva no calçadão de Copacabana por um gay revoltado
com o inesquecível personagem Crô, porque ele mais parece um homossexual saído
dos discos de piadas do Costinha. Silva precisou correr muito pra escapar da
surra, mas depois do ocorrido os fãs descobriram a quem devem azucrinar quando
não gostam de certos personagens ou aspectos das novelas. De tal forma que hoje
o autor parece nem precisar se esforçar muito na profissão, pois as tramas são
praticamente escritas pela audiência.
Desde 1997 quem decide qual personagem vive ou morre somos nós. Os
tempos de Regina Duarte como mocinha irresistível e carismática há muito
chegaram ao fim. Virou praticamente um esporte o ódio da audiência por mocinhas
bondosas, ingênuas e sofredoras. Como o amor foi praticamente apagado de nossas
vidas no mundo moderno, nem gosto de imaginar como os novelistas sofrem para
escrever os papéis das ditas heroínas virginais. Até protagonistas
revolucionárias como a Preta de Da Cor Do Pecado, a Donatella
de A Favorita, a Nina/Rita deAvenida Plasil e a Morena
de Salve Jorge enfrentaram focinhos torcidos da audiência e
custaram a conquistar as donas de casa desocupadas.
Pior que a caça aos autores, só a hipocrisia de alguns telespectadores.
O maquiavelismo da audiência às vezes assusta mais que o dos vilões... Visito
inúmeros portais especializados em novelas e acho graça das críticas inflamadas
defendendo a moral, os bons costumes e criticando a sordidez do enredo da
novela das nove. Dá vontade de me enforcar com tanta contradição e choradeira
das pessoas, que costumam disparar frases feitas como “Esse autor é um louco,
um tarado que devia ser internado!”; “Pra quê tanta violência? Tanto
sofrimento?”; “Escrever uma novela assim devia ser crime!” ou “Por que não
escrevem uma novela só com temas leves, positivos, enaltecendo o amor e a
família, onde ninguém sofra?”. Detalhe que a maioria dessas recalcadas saberia
até dizer quantos pêlos o Félix tem em cada nádega. Às vezes desafio essas
donas de casa a assistir a uma novela onde absolutamente nada de ruim aconteça
e tentar manter o sorriso no rosto enquanto assiste, deve ser divertido como
assistir a barba crescer diante do espelho...
Porém, a Vênus Platinada planeja dar o troco. Ano que vem, alguns
autores conquistaram um antigo sonho de ter direito a entregar os roteiros das
novelas praticamente completos, do primeiro ao último capítulo, antes mesmo de
começarem a gravar. Com isso, eles teriam a liberdade de fazer o que quiserem
com a trama e os personagens, sem interferência dos caprichos do público. Se a audiência
gostar ou não, problema nosso. Uma solução bem mais radical que ensinar a dona
de casa desocupada a mudar de canal...
*Designer e escritor. Sites:
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As novelas são a sua praia. Gosta e fala delas apaixonadamente, embora fale mais do que assiste.
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