O colecionador de histórias
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Quem
gostava de contar essa história saborosa, lá no Canto do Fuxico, era um sábio
amazonense, o etnólogo Geraldo Macedo Pinheiro (1920-1996). Ele não contou para
mim, mas para seu filho, herdeiro de seu nome, que me relatou e eu, agora, a
repasso para ti, desocupado (a) leitor (a). Faz dela o que bem entenderes. Se
quiseres, conta a teus filhos e netos. O fato aconteceu mesmo, de verdade,
embora entre o acontecido e o narrado a gente introduza sempre os enfeites de
praxe.
O cenário é um restaurante chique de Manaus, na década de 1950, ali na
Eduardo Ribeiro, em prédio já demolido para sediar agência bancária. Esse foi o
palco da ação vivida por nosso herói.Zeloso funcionário do Ministério da
Agricultura e veterinário de profissão, ele viajou por toda a Amazônia e se
embrenhou na floresta para estudar a fauna e a flora aquática. Aprendeu com os
índios que gente e bicho, por quem era fascinado, faziam parte de um mesmo
conjunto, eram todos seres vivos, igualmente dignos de respeito e carinho,
especialmente, mas não exclusivamente, o bicho-mulher.
Deixa-me que o apresente sem mais delongas. Seu nome é Manuel Nunes
Pereira (1892-1985), nasceu no Maranhão e incorporava - como ele mesmo dizia -
a síntese do povo brasileiro, pois "tinha os cabelos de português, a cara
e alma de índio e a pele mulata herdada da mãe". Na convivência com os
índios, ele - que já era enólogo desde sempre - se tornou um respeitado
etnólogo, reconhecido nacional e internacionalmente.
Sabia ouvir. Mais do que isso, sabia escutar os índios e decifrar os
mistérios dos seus mitos. Em suas andanças pelas aldeias, colecionou inúmeras
histórias, sagradas algumas, profanas outras, eróticas, libidinosas e cômicas
quase todas, onde os heróis civilizadores desmoralizam o sentido da narrativa
trazida por missionários. Publicou livros, entre os quais "Moronguetá:
um Decameron indígena", classificado pelo poeta Thiago de Mello como
"livro romântico, heróico, fescenino, sarcástico, burlesco, lírico e
obsceno". Enfim, livro sacana, no bom sentido, é claro.
Mina de ouro
Eis que, depois da II Guerra, no final dos anos 1940, quando não
existiam instituições financiadoras de pesquisas, Nunes Pereira queria
prospectar uma mina-de-ouro: as narrativas dos índios Sateré-Mawé, que tinham o
poder de hipnotizá-lo. Sem recursos para a viagem e estadia nas aldeias,
apresentou um projeto à vetusta Associação Comercial do Amazonas (ACA), em cuja
diretoria tinha amigos. Eles aprovaram o projeto só mesmo em nome da amizade,
já que não tinham qualquer interesse pelo tema, o negócio deles era apenas com
o vil metal, o único ouro que buscavam.
A ACA liberou a grana, que para eles era uma merreca. Lá vai Nunes
Pereira para o rio Madeira em busca da palavra encantada. Passa uma longa
temporada e, tempos depois, volta com o texto pronto do seu livro "Os
índios Maués", mas antes de publicá-lo, o que só aconteceria em
1954, queria apresentá-lo à entidade financiadora. Para isso, pediu uma
reunião. Os patrocinadores da pesquisa, que estavam se lixando para os índios e
suas narrativas, desconversaram. Solicitou duas, três, dez vezes. Nada.
Uma bela manhã, cansado de esperar, Nunes Pereira, com uma pasta de
papéis sob o braço, entrou no Bar e Restaurante Avenida. Sentou numa de suas
mesinhas redondas de ferro, com tampa de vidro. Tomou umas e outras doses de
cocal, a cachaça local. Quando o relógio da Matriz deu as doze badaladas, ele
saiu, sentou numa das cinco cadeiras de engraxate que ficavam ao lado da
entrada do bar, pediu um brilho no seu sapato e, enquanto isso acontecia, teve
uma ideia luminosa.
- Se vocês fizerem o que eu pedir, pago o almoço de todo mundo - propôs
ele aos cinco engraxates que tinham entre 10 e 12 anos.
O assassinato de um dos engraxates que abalou Manaus não havia ainda
ocorrido, inexistindo portanto o provérbio "quem tem tu, tem medo, cuidado
com o Figueiredo". Diante da entusiasmada resposta afirmativa dos meninos,
Nunes Pereira os convidou a entrar no restaurante, em cujo banheiro se lavaram.
Ocuparam mesa com seis lugares sob olhares curiosos de outros clientes. Nunes
encomendou um baião-de-dois com jaraqui frito para todos - que manjar! - e, de
sobremesa, um sorvete de cupuaçu, especialidade da casa.
- Como é teu nome? - perguntou Nunes Pereira se dirigindo ao primeiro
menino, já sentado.
- Orlando Pirulito - respondeu o garoto.
- Esquece. Durante este almoço, você vai ser Aluízio Benzecry,
presidente da ACA. Como é teu nome? - testou Nunes Pereira.
- Aluízio Benzecry, presidente da ACA.
Fez isso com cada um, compondo toda a diretoria da Associação.
Luiz-mal-de-vida passou a ser Jayme Benoliel, vice-presidente; Francisco
Dá-o-toba se transfigurou em Phelippe Bittencurt, o tesoureiro. A secretaria
geral ficou com Severino Santo-Pobre agora com o nome de Armindo Levy e o
Conselho Fiscal com Mário Trezentos, transformado no doutor Wilson Baptista de
Sales.
Enquanto os engraxates comiam, com suas imagens refletidas nos espelhos
de cristal do restaurante, os demais comensais, atônitos, viram Nunes Pereira
se levantar, tirar os papéis da pasta, ficar de pé e começar a ler:
- Senhores membros da Diretoria da Associação Comercial do Amazonas,
faço leitura do meu relatório sobre o trabalho de campo realizado com os
Sateré-Mawé com financiamento desta instituição...
O discurso durou mais de uma hora. De vez em quando, um dos membros da
diretoria aprovava balançando a cabeça. Nunes concluiu informando sobre os
procedimentos realizados na coleta das histórias:
-
Gostaria de vos falar sobre meu método de trabalho. Quando eu ouvia as
historias dos índios, escutava, sem interromper, os narradores e pedia que
falassem lentamente, porque ia anotando - se falassem em língua geral - as
frases dos vocábulos mais expressivos. Não dispondo de um gravador, lamento não
ter registrado certas vozes, gritos, assovios dos personagens das histórias,
fossem eles animais ou seres humanos. Não pude reter as mímicas, os
gestos, a contração dos lábios e o cerrar de pálpebras dos narradores.
A leitura foi seguida atentamente por Giovani Meneghini, o seu João, que
havia acabado de comprar o restaurante em dezembro de 1952. Depois que os
engraxates liquidaram a sobremesa, Nunes Pereira concluiu sua fala.
- Os senhores diretores da ACA gostaram? - perguntou, de forma ambígua,
porque se referia ao relatório e a resposta apontou em outra direção:
- Sim - responderam os membros da diretoria, aprovando o sabor do
jaraqui frito e o cheiro do cupuaçu.
- Considero, então, aprovado meu relatório - disse Nunes Pereira, depois
de, solenemente, prestar contas à sociedade que havia financiado sua pesquisa.
Quando foi pagar a conta, dona Adelina Meneghini, no Caixa, não aceitou: o
almoço era cortesia do Bar e Restaurante Avenida. O restaurante inteiro
aplaudiu. Lá fora, com ajuda da graxa, Nunes Pereira tomou as impressões
digitais de toda a diretoria da ACA, carimbando com elas a última página do
relatório. Estava sacramentado.
Na xereca da baleia
Zombeteiro, gozador, bufão, intelectual e boêmio, Nunes Pereira mereceu
a atenção do pesquisador Harald Pinheiro que nesta quinta-feira defendeu na PUC
de São Paulo tese de doutorado em Ciências Sociais, onde analisa tanto as obras
de Nunes Pereira como as de outro colecionador de histórias, o botânico João
Barbosa Rodrigues. Além disso, Harald define o perfil do nosso herói num
depoimento pessoal:
"Lascivo e libidinoso, contava histórias surpreendentes e
engraçadas, na roda de amigos e admiradores nos bares em que frequentava.
Quando eu era ainda adolescente frequentei uma dessas rodas de narrativas
encantadas (acompanhando meu pai) e me fascinei com estranha história narrada
por Nunes Pereira com seriedade e volúpia, depois de posar para uma foto na
genitália de uma baleia. Há quem afirme ser verídica e, inclusive, ter visto a
foto, mas até hoje ela ecoa em minha imaginação com verossimilhança e mistério,
acompanhada por atmosfera de curiosidade erótica e profundo encantamento
etnopoético".
A banca aprovou a tese com nota dez e recomendou sua publicação. Nela, o
novo doutor, Harald Sá Peixoto Pinheiro, analisa a dimensão estética e dá
visibilidade à poesia das narrativas indígenas registradas por Nunes Pereira.
Dedicou-a a seu pai Geraldo Macedo Pinheiro, a quem homenageamos. "Narrar
é fazer pensar e fazer sentir que o passado não morreu" nos diz Walter
Benjamin citado na tese. Se isto é certo, trata-se de doce vingança: cinco
filhos doutores de Geraldo Pinheiro estão escrevendo aquilo que foi pensado
pelo pai que, desta forma, permanece entre nós.
P.S.1 Amazonenses da capital e do interior e do estado, meus
companheiros e companheiras dê lutas e dê ideais, não deixem de ler: Harald Sá
Peixoto Pinheiro: "Mitopoética dos muiraquitãs, porandubas e
moronguetás: ensaios de Etnopoesia Amazônica". Complementem com a tese
defendida na mesma PUC por Selda Vale da Costa, em 1997, "Labirintos
do saber: Nunes Pereira e as culturas amazônicas".
P.S. 2 - Da banca de Harald fizeram parte Edgard de Assis Carvalho
(orientador), Lucia Helena Vitalli Rangel, Edimilson Felipe da Silva, Iraildes
Caldas Torres e este locutor que vos fala. Além de Geraldo Macedo Pinheiro,
lembramos a antropóloga Carmen Junqueira, ainda hoje na ativa, que foi
professora de todos nós presentes naquela sala e, em 1977, incendiou corações e
mentes no curso de antropologia amazônica que ministrou em Manaus. O referido é
verdade e dou fé.
*
Jornalista e historiador
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