O aluno
* Por Raimundo Antonio
Tinha o ar desafiador e gostava
de demonstrar isso todas as vezes que podia. Raras vezes permanecia na sala
depois que eu entrava. Se ficava, tinha sempre uma frase irônica, provocativa,
insolente. Perturbava mais do que devia e era permitido. Mostrava indiferença
nas explicações e isso de uma forma rebelde, agressiva. Discutia com os colegas
na minha presença e usava de todas as maneiras para fazer com que eu lhe
chamasse a atenção. Se me encontrava pelos corredores da escola, sorria
ironicamente, depois estufava o peito com ar de superioridade.
Era sempre assim. A despeito de
tudo, eu não o incomodava, não o repreendia, nem tampouco pedia para ele ser
punido. Não. Havia algo naquele jovem que me intrigava; que fazia com que eu
dedicasse tempo para refletir sobre sua conduta. Ao invés de puni-lo,
retirando-o de sala; ao invés de solicitar uma punição por parte da direção (o
que seria até justo), fiz o contrário: passei a observá-lo, tentando entender
tanta raiva, tanta rebeldia.
Descobri, por exemplo, que nos
intervalos, ele gostava de ficar em um canto da quadra, sozinho, pensativo e
olhar distante. No refeitório era sempre muito disciplinado, e sempre que
terminava de “merendar”, fazia questão de colocar a cadeira no devido lugar e
sair juntando os pratos deixados “esquecidos” por seus colegas.
Fui anotando cada descoberta,
tentando traçar um perfil para aquele adolescente de 15 anos, que era
indisciplinado por um lado e completamente surpreendente, por outro. Tomei uma
decisão: ia tentar me aproximar para conversar e, se pudesse e fosse
necessário, ajudá-lo. Daria conselhos, orientações e um pouco de amizade, se
ele quisesse.
Tinha experiência nesse sentido,
apesar de já ter perdido vários alunos para o “mundo”. Alguns, com atitudes
parecidas como as dele. Outros, já chegavam “infeccionados” pelas maravilhas da
rua, dos seus donos. Só uma coisa era igual: a realidade social de todos eles.
Fiz várias tentativas, todas em
vão. Era sempre assim: eu chegava, tentando puxar conversa, o
silêncio como resposta e, depois, o mesmo ar irônico, o peito estufado, a saída
do local. Ia perdendo a esperança, ia perdendo mais um aluno.
Porém, a ocasião para a
aproximação, finalmente aconteceu. Tem um ditado que diz: “não há um mal que
não traga um bem”. Parecido. Numa tarde, ao chegar à sala de aula, ele quando
me viu, levantou-se para sair. Eu, por um acaso do destino, fui chamado à sala
dos professores, e voltei.
Ele, com sua rebeldia, sua
superioridade de adolescente dono do mundo, ao sair, bateu com força a porta da
sala, esquecendo sua mão nela. Grito foi o primeiro som que ouvi. Depois a
correria dos outros alunos para ver a cena, o sangue e o choro. Corri,
afastando-os, procurando evitar que mais uma cena absurda fizesse parte da
rotina deles.
Ele olhou-me, pedinte. Amparei-o.
Disse-lhe palavra para acalmá-lo. Levei-o à emergência de um hospital, onde foi
feita uma pequena cirurgia para restaurar dedos e artérias da mão. Providenciei
a medicação, repassei-lhe os cuidados que deveria ter e tomar. Levei-o em casa. Era simples, cheia
de irmãos menores. Apenas a mãe. Na saída, ele levantou os olhos, agradeceu-me
quase sereno, apesar da lágrima que escorreu pelo seu rosto.
Hoje sempre nos encontramos na
Universidade. Não perdi um aluno, ganhei um amigo e o país, um futuro advogado.
Sua raiva de adolescente? Bem, eu era parecido com o pai que os abandonara...
*
Cronista: www.rsouzalopes.blog-se.com.br
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