terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Demo, professor de lógica

* Por Rubem Alves

Quem procurar um capítulo sobre o Diabo nos livros modernos de teologia vai ficar desapontado. Ninguém mais acredita nele. Teólogo que escrevesse sobre ele seria motivo de zombaria. Também os tempos mudaram. Antigamente era mais fácil. Todo mundo sabia como ele era, e não eram poucos os que com ele se haviam encontrado nalguma encruzilhada à meia-noite. Virou até herói literário, por artes de Goethe, que descreveu sua longa convivência com um certo Dr. Fausto. Não havia muito acordo sobre os detalhes, mas a maioria das testemunhas afirmava ser ele um habitante das partes baixas do universo e dos homens, com preferência pelos fedores sulfúricos que saíam dos orifícios da terra e dos orifícios do corpo. Cheirou enxofre, por via das dúvidas um sinal da cruz não é demais. Seu cultivo das partes baixas lhe concedeu virtudes extraordinárias nessa área, sendo possuidor de qualidades fálicas incomparáveis, o que o tornava um motivo da inveja dos homens que procuravam os
seus favores e das mulheres os seus amores.

Diz-se que muitos velhos, diante do flácido veredicto da idade, venderam a ele a alma por uns anos mais de virilidade. Também há muitos casos comprovados e relatados em suas minúcias, perante assexuadas assembléias de clérigos, de ligações libidinosas entre Satanás e mulheres de fogo incontrolável, bruxas, com a resultado de filhos monstruosos, como no caso do bebê de Rosemary... Sua forma de fauno, chifres, rabo e pernas de bode, indicava ser ele um ser de vitalidade animal ilimitada, o que lhe dava o poder de conceder aos homens realizar o prazer de suas paixões. O que explica as razões de haver ele sido sempre associado ao fogo. Paixão é fogo. O Demo mora num lugar onde as paixões estão em chamas. Seu palácio, o Inferno, segundo se dizia, era uma imensa fornalha, e o combustível para tamanha fogueira eram os desejos da carne que não se apagam nunca.

Hoje já é mais difícil encontrá-lo. O que levou muita gente a pensar que ele não existe. Como me falta conhecimento de primeira mão, pois nunca o vi, quem me instrui nestas coisas é o Riobaldo, jagunço, que por ser homem das solidões do sertão, vê coisas que ninguém mais vê. E o que ele afirma (um espanto!) é que “o demônio não precisa de existir para haver - a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo”. E me veio então a suspeita de ser esta a razão para o seu desaparecimento: por já haver tomado conta de tudo.

A se dar crédito no que diziam os antigos, seria de se concluir que ele está bem no meio da guerra, pois não existe nenhum outro lugar no mundo onde as paixões estejam ardendo tanto. O fogo de fora só faz atiçar o fogo de dentro. Os de lá, os de cá, os inimigos e os aliados, todos iguais. Há as paixões do amor: a saudade da casa, a carta da namorada, o retrato de um filho - tudo misturado com as armas e as máscaras. Há as paixões do ódio: a raiva dos donos daquilo tudo, o prazer de matar, o desejo de destruir. Há as paixões do medo: o medo de morrer.. Inferno. É, o Diabo deve andar por lá.

Discordo. A coisa que o Diabo menos gosta é o Inferno. No Inferno moram os homens. Ali se sente o cheiro da sua carne. Mas o Diabo tem nariz muito sensível. Guerra é esgoto malcheiroso do mundo. Mas o Diabo é lá besta de gostar de esgoto? Quem gosta? Assim como evacuar é o lado fétido da delicada operação de comer, a guerra são as fezes da delicada operação de pensar. É disto que o Diabo gosta: pensamento puro, sem paixão. Ele é um esteta. Contempla, analisa. Jogador de xadrez. Dante disse que o Diabo é um ser glacial, que vive imóvel dentro de uma montanha de gelo. Sua morada não é a paixão que vive nos lugares baixos e quentes do corpo, mas a frieza que mora nos lugares altos da alma. O Diabo é gelo. Inteligência pura, corpo magro, de hábitos alimentares ascéticos, disciplina intelectual rígida, tendo chegado mesmo a autocastrar-se para fugir da divina tentação do amor... Por isto fica sempre longe das loucuras infernais das paixões, coisa dos homens. Para os que estão apaixonados, ainda resta uma esperança.

É assim que ele faz as guerras. Não pelas emoções mas pela precisão científica daqueles que pensaram as armas (e eles dizem: “Não matamos ninguém, só pensamos”). Pela precisão econômica daqueles que fizeram os cálculos dos lucros (e eles dizem: “Não matamos ninguém, só fizemos bons negócios”). Pela precisão lógica daqueles que jogaram o xadrez da morte (e eles dizem: “Não matamos ninguém, só pensamos a estratégia do poder”). Tudo limpo, tudo elegante, tudo respeitoso, dito com voz calma e fria. Tudo é gelo. O Amor se apagou. Tudo é lógica. Tudo é inteligência. E a inteligência pura é coisa do Diabo. “A lógica”, dizia Guimarães Rosa. “é a força com a qual algum dia o homem haverá de se matar. Apenas superando a lógica é que se pode pensar com justiça. Pense nisto: o amor é sempre ilógico, mas cada crime é cometido segundo as leis da lógica”

Não é de se admirar, portanto, que o Diabo não seja mais encontrado. Pois, quando não existe, aí é que tomou conta de tudo. Onde mora o Diabo? Justo lá onde se pensa que ele não está. Na inteligência pura.


* Escritor, teólogo e educador, membro da Academia Campinense de Letras

Nenhum comentário:

Postar um comentário