A morte do poeta e os
ecos da “novembrada”
Por Eduardo Paredes
Historicamente Santa Catarina é um estado privilegiado, como poucos, em
termos de produção cultural. A pluralidade e diversidade desse patrimônio
imaterial advêm, acredito eu, de um encantamento com suas belezas naturais e do
encontro das inúmeras etnias que se espalham por todo o território catarinense.
Por isso mesmo, é absolutamente inadmissível que a Cultura continue sendo (mal)
tratada como peça assessória no contexto das políticas governamentais. Essa
riqueza artística e cultural acumulada é que dá identidade ao povo catarinense.
No entanto, infelizmente, o setor cultural vem lutando para sair do plano do
supérfluo e ganhar a importância que lhe é devida.
Em termos de política pública cultural o que constatamos é um estado de
abandono, desrespeito e contínua omissão. Há muitos anos a Cultura foi
embrulhada num mesmo pacote com o Turismo e o Esporte, compondo uma Secretaria
que já se chamou SOL – Secretaria da Organização do Lazer, inspirada nas
teorias do “ócio criativo” do sociólogo italiano Domenico De Masi. Qual o
sentido de se "organizar o lazer" e de se pregar o "ócio
criativo", especialidade na qual boa parte dos nativos da Ilha de Santa
Catarina são PHD?Parece piada, mas não é.
Tendo recebido como herança maldita do seu antecessor, o atual
governador manteve intacta a estrutura de Governo que, a par das chamadas
Secretarias Centrais, sustenta a paquidérmica coleção de quase 40 Secretarias
de Desenvolvimento Regional. Qualquer cidadão com um mínimo de bom senso,
informação e cultura reconhece que esse modelo condena o Estado a uma situação
de profunda anemia financeira. É cristalino que essas SDR somente existem para
acomodar cabos eleitorais e que a descentralização poderia muito bem ser
executada através de Coordenadorias, Diretorias ou Gerências. Mas quem se
atreve a cortar as benesses, mordomias e privilégios contidos no status de
Secretaria? Por que arriscar a base de sustentação política que assegura a
continuidade no poder? Ninguém é bobo – somente o povo, o contribuinte, que
paga a conta.
É triste reconhecer que o Governo do Estado, tão pródigo na criação e
manutenção de tantas Secretarias, não dê autonomia e independência para esses
três setores importantíssimos, que são o Turismo, o Esporte e a Cultura. Não há
como reconhecer a importância do Turismo para a economia do Estado. Mas esse
setor também não consegue se desenvolver e expandir suas potencialidades da
forma como está situado. As demandas do Turismo são vastas e complexas e
precisam de um planejamento próprio. O mesmo vale para o Esporte e a Cultura,
que são determinantes para uma política pública séria que pensa em formação de
cidadania e inclusão social. Se em determinado momento o Turismo se entrelaça
com a Cultura, essa área de convergência é ínfima para justificar tal
atrelamento. Arrisco dizer que de cada mil turistas que visitam o Estado,
depois da praia menos de uma dúzia procuram por um museu, teatro ou galeria de
arte. O destino natural são os shoppings, bares, restaurantes e baladas. Isso é
óbvio.
A Cultura padece ainda mais por esse equívoco administrativo, pois
sobrevive à sombra do Turismo. As casas de cultura e espaços culturais vivem à
míngua. Os artistas há muito foram deserdados, com os poucos editais públicos
de fomento às atividades artísticas sendo ano a ano empurrados com a barriga,
procrastinados ou adiados. O que impera é a política neoliberal de
transferência de responsabilidade das decisões sobre a Cultura para a
iniciativa privada, na medida em que a principal ação de governo é induzir os
produtores e agentes culturais a utilizar os mecanismos de incentivo fiscal.
Isso quando o próprio Governo não compete de forma desigual com os produtores
independentes, indo ao mercado captar patrocínio para seus próprios projetos,
como no caso emblemático da Ponte Hercílio Luz. E com isso, o que resta como
marca de ação governamental são a ausência, o autoritarismo e a instabilidade
na área cultural.
Na última segunda-feira, 25 de novembro, tive a honra de ser agraciado
com a Medalha do Mérito Cultural Cruz e Souza. A maior honraria da Cultura no
Estado, algo que nunca cobicei e que jamais imaginei alcançar. Ainda tenho
dúvidas se de fato sou merecedor de tal distinção. Mas como estava em ótima
companhia, resolvi aceitar. Juntos estavam, in memoriam, o mestre
Zininho e o escritor Holdemar de Menezes, mais o coreógrafo Amarildo Cassiano,
do Ballet Bolshoi de Joinville, o cenotécnico e administrador cultural Osni
Cristóvão, o historiador e fotógrafo Joi Cletison Alves, e as instituições
Associação Coral de Chapecó, Federação Catarinense de Teatro – FECATE, Museu
Victor Meirelles e Biblioteca Pública do Estado. Confesso que quando o
escritor Amilcar Neves, membro do Conselho Estadual de Cultura, fixou em meu peito
a medalha que leva o nome de Cruz e Souza, a emoção bateu forte e invadiu a
minha alma. Um momento fugaz, que ficará guardado eternamente. Só que a
realidade dos fatos logo me fez trocar em parte a alegria pela tristeza, o
envaidecimento pela indignação.
A começar pela consciência de que a sina de Cruz e Souza, apesar da
passagem do tempo, ainda persiste entre boa parte dos que se atrevem a fazer da
arte uma profissão de fé. Gênio do simbolismo universal, maior poeta
brasileiro de todos os tempos na minha modesta opinião, Cruz e Souza morreu na
mais absoluta miséria. Em vida, sofreu na pele negra a rejeição causada pelo
preconceito e racismo, tendo suportado a dor de ver quatro de seus filhos
morrerem de tuberculose e a mulher Gavita enlouquecer aos poucos diante de
tanto sofrimento, decorrente da fome e da péssima condição de vida da família.
De Minas Gerais, onde havia ido buscar tratamento para a tuberculose que por
fim também o levou, o corpo de Cruz e Souza foi transportado em um vagão de
trem que levava gado para o Rio de Janeiro, onde foi sepultado praticamente
como indigente. Bastou morrer para que a sua genialidade fosse reconhecida,
sendo alçado ao panteão do simbolismo universal ao lado de Verlaine, Rimbaud e
Mallarmé. Mas seus restos mortais, trasladados alguns anos atrás para
Florianópolis, a sua cidade natal, entre discursos demagógicos e foguetórios,
vergonhosamente continuam abandonados num canto perdido do Museu Histórico que,
solene e ironicamente, também leva seu nome – Palácio Cruz e Souza.
Enquanto as medalhas iam sendo distribuídas eu me afundava na poltrona e
em meus pensamentos cada vez mais cinzas. Olhando o palco do Teatro Álvaro de
Carvalho, fundado em 1857 e que tantos artistas e espetáculos memoráveis
acolheu ao longo de sua história, lembrei-me de que ele também, Álvaro de
Carvalho, o primeiro dramaturgo catarinense, igualmente não teve o descanso
eterno que merecia e o respeito que se esperava dos governantes catarinenses.
Seus ossos mortais continuam abandonados em Buenos Aires, aonde veio a falecer
de febre tifoide em 1865.
Pensei em Zininho, o nosso poeta maior, autor do hino oficial da capital
catarinense. Enquanto sua viúva e sua filha recebiam a comenda que, em seu
caso, já veio tarde, também lembrei de toda a privação que passou no crepúsculo
de sua vida. O nosso maior músico, Luiz Henrique Rosa, que naquela mesma data
se vivo fosse completaria 75 anos, também foi solenemente ignorado. Assim como
a data litúrgica, 25 de novembro, que é dedicada a Santa Catarina - padroeira
dos artesãos, artistas, bibliotecários, jovens, estudantes e desse Estado –
sequer foi mencionada pelo cerimonial, num lapso imperdoável. Pior foi
constatar que o desprestígio e desapreço pela Cultura catarinense se
evidenciava na ausência de quem se esperava exatamente o contrário. Não
apareceu nenhum senador, deputado, representante do
prefeito, vereador, secretário de Estado (além do titular da pasta do
Turismo, Esporte e Cultura, Valdir Walendowski), sequer representantes
das entidades culturais (com raras exceções), assim como nenhuma cobertura por
parte dos jornais ou emissoras de televisão. O próprio Governador do Estado,
Raimundo Colombo, que foi quem assinou a outorga da Medalha do Mérito Cultural,
vim a saber pela coluna do Cacau que naquele exato momento tinha ido ao
shopping assistir a um filme depois de dez anos sem ir ao cinema. Poderia
ter esperado um pouquinho mais. Gostaria muito de ter dirigido a fala que me
encarregaram em nome dos homenageados (e que reproduzo em parte nesse artigo) olhando
nos olhos do nosso governador só para ver qual a sua reação e o que teria para
dizer. Por isso, só tenho uma palavra para resumir o que ocorreu:
lamentável!
Ao que parece, os sismógrafos dos políticos e governantes continuam
desligados. Não captaram ainda os tremores que vêm das ruas, do povo anônimo e
cada vez mais impaciente. Esqueceram-se dos ecos da “novembrada” (que hoje faz
34 anos e que também deve passar no esquecimento), assim como das “diretas já”,
do impeachment do Collor e até mesmo das manifestações que varreram esse país
como um tornado em meados deste ano. Podia ainda lhes lembrar da revolução
francesa e bolchevique, da chinesa e da cubana, com as consequências diretas
para os incautos governantes que também ignoraram as vozes inconformadas que
vinham das ruas. Mas prefiro mirar a outra margem: se os governantes não mudam,
que se mudem os governantes. Para tanto, é necessário que o povo se mobilize,
permanentemente, determinado a combater essas redes piramidais de
apadrinhamento que mantêm inabaláveis as estruturas desgastadas do poder e que
permitem aos seus ocupantes manterem por longos períodos o estamento e o status
que lhes asseguram as benesses e as vantagens que ele, o povo, banca. Mas para
isso é preciso liberdade de informação e um processo contínuo de cidadania,
educação e inclusão cultural.
Ainda haverá o dia em que o slogan para esse nosso Estado, muito mais do
que uma mera peça publicitária artificial, mas como reflexo concreto de um
pacto pela Cultura entre governo e sociedade, seja de verdade “Santa, Bela e
Culta Catarina”!
* Jornalista e cineasta
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