O não ser
* Por
Marcelo Sguassábia
Eu sei que foi mais ou menos desse jeito, querendo jogar uma água
sanitária no mofo acumulado, que saí pra rua sem rumo nenhum. Pensando em não
pensar em nada, só ouvindo um ou outro estalinho de graveto no caminho e
deduzindo: isso é um estalinho de graveto no caminho.
Eu sei que a intenção era boa e honestamente me empenhei, mas ao
primeiro graveto estalado me chega sorrateiro o chato interrogativo e suas vãs
divagações. E me fala do abismo entre a finitude do ser e a infinitude do
tempo/espaço, diz que é da natureza humana colocar termo, ordem e dimensão a
tudo. Argumenta sobre o cabimento, pois tudo há de “caber” em ensaios
demonstráveis.
Eu sei do inapelável desalento desse ponto de vista. Considerando-se que
a vida seja mesmo uma só, ela é um ridículo intervalo entre a eternidade que
passamos não sendo e a eternidade vindoura onde continuaremos a não ser. Ao
invés de seres, na verdade somos “não seres”, a não ser por algumas décadas. E
tem gente que não aproveita essa rara exceção que o caos nos abre. Pior: há os que
se matam, voltando prematuramente ao nada. É muito desapego, é quase fazer
troça com o acaso ou com o Todo Poderoso.
Eu sei o quanto é difícil imaginar o que quer que seja sem um começo.
Você saber que o tempo vai prosseguir indefinidamente a partir de agora, ainda
vá lá. Mas você aceitar o infinito de tempo que houve antes de agora, fica bem
mais complicado. Algo sem fim é algo mais fácil de conceber que algo sem
começo. Uma coisa é começar do zero, como todas as coisas aparentemente
começam. Outra é não ter zero. Como é que pode?
Não seria razoável supor que a nossa cachola abrigue, em tão reduzido
espaço, a explicação do universo. Ainda assim, astrônomos se debatem e agendam
simpósios internacionais para deliberarem, soberanamente, se Plutão continua
planeta ou se é rebaixado a aspirante. Como se isso diminuísse o peso das
interrogações que há milênios levamos às costas.
Eu sei que entrei na primeira igreja que me apareceu na frente. Um grupo
de oração seguia desfiando seu rosário. Beatas de véu, homens de terno, como
que prontos para uma Festa do Divino. Rezei uma Ave-Maria e um Pai-Nosso,
rogando a todos os santos que me tirassem da aflição inútil. Com o perdão dos
céticos, que às vezes perdem a razão pelo excesso dela, eu quero é nuvenzinhas,
tronos celestiais, trombetas de serafins, mantos diáfanos. E faço questão que a
autenticidade do Santo Sudário seja confirmada pela ciência. Que divina delícia
esse conforto das abóbadas repletas de anjos gordinhos com cabelos
encaracolados, os ecos de uns poucos sapatos na catedral vazia, às duas da
tarde de uma segunda-feira. Ou os ofícios dos domingos, os estandartes, cálices
bentos e andores das procissões, os tapetes de serragem e palha de arroz
tingidos de anilina para o Corpus Christi. O céu e o inferno, Adão e Eva, o bem
e o mal. Quero o padre de aldeia, que vem dar comunhão em casa e acaba ficando
para o frango com polenta.
*
Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Com sua explicação fica muito mais fácil entender o existir. Clareou tudo. O clímax ficou por conta da explicação da visão dos céticos. O problema deles é o excesso de razão.
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