Erick
* Por Marco Vasques
Ele morreu na última quarta-feira. Tinha poucos anos de vida e setenta
por cento do corpo queimado. Brincava com fogo e não tinha como mensurar o
limite entre o desejo da labareda e o perigo incendiário. O perigo venceu sua
aventura e coragem. Erick não sabe, mas sua morte virou capa de jornal,
manchete sensacionalista em televisão, acendeu a discussão sobre a velha e
sabida precariedade da saúde pública, arrancou lágrimas de uma senhora de
setenta e nove anos, virou assunto nos bares de Lages e seu rosto figura nas
redes sociais. Ele, que nunca quis mais que uma brincadeira de inocência, foi o
assunto da semana.
Logo outro morto substituirá Erick e todos voltarão a discutir a próxima
rodada do campeonato de futebol, a nova namorada do Roberto Carlos, o próximo
capítulo da novela, a próxima festa, o Natal insurgente, a temporada de verão e
outras tragédias vindouras. Os familiares aos poucos se acostumarão com o
silêncio, com a ausência, e Erick irá, em pouco tempo, se tornando uma paisagem
borrada, uma lembrança, um relâmpago nas noites escuras de sua mãe, que
carregará consigo, para sempre, um incômodo ponto de interrogação. Sua história
não será cantada em poemas, em peças de teatro ou no cinema.
No entanto, hoje, muito ainda se fala sobre o caso. Há quem culpe os
pais, porque permitiram que uma criança manuseasse álcool e fogo. Há quem
julgue o infante que com ele brincava. Outros abominam o governo por não ter
prestado o socorro devido. Há quem faça mil conjecturas para afirmar que o fato
poderia ter sido evitado. Não foi. A vida é inevitável e a morte é bicho
renitente. Erick é só este silêncio entre a gente. Quando uma criança do nosso
tempo morre, não é apenas mais uma morte que se soma; quando uma criança do
nosso tempo morre, também morremos.
Nada sabemos sobre Erick. Se ele era feliz, se amava seus pais, se
sonhava com os voos dos pássaros, de que tipo de brincadeira mais gostava, o
tom da sua voz, a cor de seus olhos, que comida o satisfazia. Nada sabemos
sobre suas preferências, alegrias e tristezas. O amigo, que com ele sonhava a
alquimia de domar as chamas, atônito, sabe e sente que algo deu errado, que o
mundo se estranhou, se brutalizou. Sente que tudo ao seu redor emudeceu e se
agigantou. Sabe, agora, que não tem braços que possam conter o calor que
consumiu Erick. Ele, quando adulto, talvez será o único a guardar a imagem do
amigo, incendiado, correndo sem destino, enlouquecido, rumo à paisagem ausente.
Saberá, sem dúvida, que Erick morreu numa quarta-feira ensolarada e que
acinzentou as nuvens. Erick tornou o verbo estrábico, gago, bêbado no silêncio.
Publicada no jornal Notícias do Dia [04/11/2013]
*
Poeta e bacharel em Filosofia
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