O espião
* Por Marco Albertim
Às oito da noite, inda que fosse um domingo, a praça em frente ao
convento não abrigava ninguém sob seus fícus cinquentões. O cruzeiro de pedra,
no centro, era só um vulto indistinto, com a redondez piramidal da mesma pedra
de cantaria. Já as ruas de duas laterais da praça, iluminadas pelas luzes dos
postes, davam conta de um movimento miúdo de gentes vindas do Baldo do Rio,
ribeirinhos endomingados com chitas ordinárias, sem remendos. Viviam no breu de
casas com paredes de barro, enxergando, à força do costume, com a luz mortiça
de lamparinas e candeeiros; não iam dar tratos à quietação sombria de uma praça
sequer com a piscação de pirilampos. As duas outras laterais da praça, uma em
frente ao Convento dos Carmelitas e outra entre a calçada da praça e os muros
de um colégio fechado, sequer eram urdidas por casais sôfregos de bolinagens.
O pórtico do convento, de carvalho com esculturas barrocas, fora deixado
com a fechadura aberta. Um por um, os homens foram entrando, depois de cruzarem
a vereda do meio da praça, tão familiar a seus sentidos brejeiros. Por ser um
domingo, vestiram-se a caráter, não com chitas ordinárias, mas com linhos
submissos ao primeiro contato de um ferro quente. Do lado de dentro, sentado
num canto do largo quadrado de pedra em volta do jardim, um frade moço, de
óculos com armação tão escura quanto sua batina, indicou-lhes a escada de
acesso à sala da reunião. A luz escassa de um dos quatro corredores, deu conta
da palidez cerosa de seu rosto.
Edgar Valongo quis ser o primeiro a falar, conteve-se para que não
percebessem a excitação com que, junto com os propósitos, mostrasse a presa que
tinha no bolso; conforme seu juízo, despojo que deixaria o inimigo sem trunfo
na peleja ainda com final impreciso.
Sentados em volta de uma mesa redonda, coberta por uma toalha xadrezada,
foram servidos de água gelada, trazida pelo frade moço, sem rebuços no rosto
cravoso.
- Não temos nada do que esconder... Faremos uma campanha com base no
apoio que temos do povo. – disse frei Tarcísio. A voz mansa espalhando a
sonoridade mansa de quando dissera o te deum da missa pela manhã.
- Estão trazendo doações para a campanha; roupas, sapatos – atalhou José
Veloso.
Ao enumerar cada item, esticava delicado os dedos da mão, feito um
professor zeloso da própria didática.
- O que vamos fazer com as doações? Comprar votos? Isto o outro
candidato está fazendo, até dinheiro estão distribuindo para a compra de
votos... – advertiu Aderico.
Não se propunha a falar nos comícios; segundo ele, para não dar margem a
suspeitas de que a campanha seria o pretexto para fomentar a subversão. De
todos, fora o único a viajar para Cuba, quando a ilha ainda depunha os restos
do governo de Fulgêncio Batista.
- Estão todos seguros de que esta reunião não está sendo vigiada por
alguém em algum canto da praça? O tenente Câmara adverte os soldados do Tiro de
Guerra de que a subversão pode estar escondida até mesmo sob uma batina. Todos
os dias!
Edgar Valongo fora o único a chamar a atenção para os riscos de que a
campanha poderia ser impugnada, caso fosse descoberto um indício de conluio
contra a lei de segurança nacional.
- Como você sabe disso? – quis saber José Veloso.
- Meu irmão está servindo no Tiro de Guerra. E o tenente Câmara conversa
comigo.
José Veloso e Edgar Valongo há muito vinham respondendo a um Inquérito
Policial Militar. Valongo, tão mofino quanto o nariz de gralha e os esses
sibilantes dos plurais afetados, mantinha conversas amistosas com o tenente
Câmara.
- Estou pedindo a ele para aliviar nossa situação no IPM – acrescentou,
certo de que poderia conseguir o afrouxamento da vigilância do militar sobre a
campanha para prefeito de Goiana.
Na noite seguinte, no comício da rua Santa Teresa, em frente à ex-sede
do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, frei Tarcísio, com a mesma mansidão com
que cantara o te deum, mencionou o exemplo da revolução francesa como
ilustração de como um povo pode urdir sua sorte.
À tarde do dia seguinte, finda a instrução no TG, o tenente Câmara
inquiriu Edgar Valongo, depois que este lhe mostrara o livro contendo o retrato
de Aderico numa rua de Havana, junto a um guerrilheiro com a metralhadora no
ombro. O livro fora tirado da estante do TG, por sugestão do tenente.
- Leve. Diga que tirou da estante quando eu virei as costas para você.
Proponha que queimem o livro para esconder a prova de que Aderico é
comunista...
*Jornalista
e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de
Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi
ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção
Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A
convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de
Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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