“A menina do quarto
escuro” comove
* Por Mara Narciso
Peço desculpas por chamá-lo de Doutor, pois o nosso convívio no CTI e no
Pronto Socorro assim o exige. É que os médicos, quando largam do avental e
tomam da pena, querem ser vistos somente como escritores. E aqui relato o que o
Doutor Manoel Fernandes acaba de escrever para nós. Terminado seu livro de
estréia, que o alçou a Academia Montesclarense de Letras, naturalmente
procura-se por outro livro seu. O autor apronta com seu leitor logo de cara.
Enfia o pobre desavisado num mundo estático, onde os dias são sempre iguais. A
miséria humana, da enjeitada Rosária, agravada pela limitação intelectual é a
tônica dessa história de ruindades. “Retardada”, palavra forte, norteia a
capacidade mental da mudinha, permitindo associá-la a “Macabéia”, de Clarice
Lispector, em relação ao total desprovimento de atrativos físicos e mentais.
Fica sugerido que quem não fala, pouco pensa, e não tem o dom de elaborar
pensamentos complexos e muito menos abstrair-se. A tortura é ainda maior,
quando a pessoa fica abafada em seus sofrimentos silenciosos.
A cena inicial é mais contundente que tiro de espingarda polveira, outra
personagem constante no enredo, onipresente, incita e atemoriza. Entre
eletrizante e chocante, fica-se com as duas, considerando-se o teor e as
expressões escolhidas. Juntam-se soco no queixo e murro no estômago, na cena de
estupro da menina de dez anos, que parece sete, devido à fome. Trocada por uma
mula velha, a criança rejeitada pelo pai por ter matado a mãe no nascimento,
serve ao comprador, o Capitão, “que lhe deposita suas imundícies”. E assim anda
a narrativa a passos de mula de tropeiro, “aquele maligno violador de corpos”.
Muitos dramas desfilam na casa paupérrima, e poucas palavras dão a dimensão
segura do que se passa lá dentro: o capeta feito gente, trazendo o inferno para
a terra. O tropel de cavalos é o sinal da chegada do monstro. “A voz da morte
era macia. Falava com expressão pausada, respiração cadenciada, como que
degustando cada palavra”.
Logo no começo é dado o aviso sobre uma possível mudança adiante, entre
anarquista e novelesca, pois, contando casos no meio do mato, em tempos
antigos, vem a expressão “felicidade não se compra em shopping center”. Soa
falso como um disco voador pousado no meio da cidade. Mas tem sua razão de ser.
Quando a protagonista sai do minúsculo povoado, do qual era excluída e odiada
por ter parte com o demônio, e vai parar numa cidadezinha, a vida sai da câmera
lenta (não o ritmo da história que é vibrante) e passa a acontecer.
Mas o leitor precisa tomar ar com força, preparando-se, pois a aventura
de dores apenas começou. O fio condutor das desgraças terrenas se intensifica
na adolescente bêbeda e prostituída, mas quando Deus faz um sapo, faz uma sapa,
e os pares formam-se. Então, a mão de médico do autor constrói uma personagem
do bem, Miguel, também médico e artista plástico fracassado devido ao
alcoolismo, e por isso um grande perdedor. Desprezado pela sociedade, usa
Rosária como última chance de redenção, esta, agora na condição de mulher
indigente agonizante, agarra-se a paciente e usando medidas heróicas salva a si
e a ela. A moribunda sem nome lhe dá forças para sair da fase de maldição.
Leva-a para casa, ocasião em que o enredo toma o ritmo de cidade grande, com
transformações aceleradas. A muda, já adulta, ex-mendiga e alcoólatra, e cujo
cérebro havia sido maltratado por um parto difícil, fome e sofrimento
permanentes, é alfabetizada, transformando-se em leitora de livros, funcionária
de biblioteca e pintora secreta.
Essa improvável continuação é mais um tapa na cara do leitor, que, no
entanto não se ressente e nem se acha traído. Acha graça da mirabolante virada.
Talvez os pintores de sucesso não se vejam ridicularizados na trama. E nem
mesmo os socialistas. Aprendemos que todo ser humano tem a capacidade de enxergar
o mundo a sua maneira e o sofrimento não é prerrogativa dos inteligentes. E que
o vivente merece boa sorte. Mas não os tenebrosos personagens criados pelo
autor, que buscou no fundo dos infernos o Capitão, a mais perversa alma dos
seus piores pesadelos. E, surpresa! Ela também é uma vítima, coisa que consta
dos mais básicos manuais de psicopatias.
Corajosa, assim que pode, Rosária vai ao encontro do passado, para se
certificar onde está o seu algoz e que fim levou o filho que teve dele. Há uma
mistura de sensações, e no meio da mesmice fez-se a luz. Manoel Fernandes achou
que entrar na Academia após seu primeiro livro foi precoce e precipitado.
Discordo. Merecimento puro, porque, depois de garimpar boas histórias em
décadas de consultório, temos não mais um livro, sim um belo livro, que
transforma a vida áspera em palavras catadas na dor, e que, estranhamente, nos
proporciona prazer.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Bela resenha, Mara. A exemplo do Manoel, você é Doutora na medicina e nas letras. Abraços.
ResponderExcluirDepois de ler esta resenha minuciosa e bem elaborada confesso que estou curiosíssimo para ler o livro.
ResponderExcluirObrigada amigos, pela força.
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