quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Vamos fazer sapatos?

* Por Fernando Yanmar Narciso

Um de meus grandes ídolos, o documentarista com fetiche por galhofa Michael Moore, lançou em 1998 o filme The Big One-Cortando Custos. Entre outros tópicos, o documentário criticava as políticas trabalhistas da Nike, que como todo mundo está careca de saber, é uma empresa americana de sapatos. Todo mundo também sabe, talvez em forma de lenda urbana, que a empresa obriga criancinhas chinesas cegas ao trabalho escravo nas fábricas há décadas por causa da mão-de-obra quase gratuita. O que gera uma contradição nos Estados Unidos, onde há tanto desemprego quanto em qualquer outro país. Sempre muito solícito e atrás da piada perfeita, Moore encheu um ônibus com mendigos e pôs todo mundo pra fazer piquete na porta da sede da Nike com faixas dizendo QUEREMOS MUITO FAZER SAPATOS!

A menos que vocês tenham saído do ventre anteontem ou se submetido a congelamento criogênico voluntário na década de 70, não precisam ser lembrados que a situação da saúde no país é pra lá de apocalíptica. Falta de tudo nos hospitais (inclusive os próprios hospitais), as faculdades de medicina se encontram quase sucateadas. Doentes terminais morrem nas filas, 9 em cada 10 ditos médicos tratam sua matéria-prima, ou seja, a nós, como carniça pros urubus, sem um pingo de humanidade ou empatia para com os pacientes. Ora, mal pago como eu sou, por que eu teria vontade de sorrir para eles? Os tempos de Hunter “Patch”Adams nos deram um tapinha nas costas há muito tempo...

Então, alguma coisa precisa ser feita. O galho é que essa “alguma coisa” só serviu pra causar a ira dos médicos- especialmente dos mal- informados. A histeria é geral na comunidade médica desde que o governo anunciou que estaria trazendo médicos de Cuba e outros países atrasados- detalhe que a negociação para trazê-los já estava feita desde o ano passado- para cuidar de lugares onde precisam encomendar band-aids pelo Sedex. Claro que os doutorezinhos recém-formados e despeitados só enxergam os médicos “importados” como mais concorrência, tendo ido até vaiar e insultar os cubanos recém-chegados. Como diria Antonio Salieri no filme Amadeus, vão em frente, zombem, riam... Mas quem estará recebendo sorrisos de vidas salvas nos mais profundos rincões do país não serão vocês!

Por aqui, o que vale é somente o status da profissão, não o exercício dela. O caboclo passa anos sonhando com aquele diz que ele vai vestir o jaleco e pendurar o estetoscópio no pescoço, ser a inveja da vila. Graças a, talvez, as novelas da Globo, as pessoas pensam que só existes num hospital cardiologistas, ortopedistas, fisioterapeutas, neurologistas, neurocirurgiões... Quem ia querer passar a mão num diploma e ir fazer carreira tratando da unha encravada de Dna. Pafúncia num SUS em Quixadá? Gente da vila quer é evoluir, não permanecer no mesmo lugar onde nasceu pra sempre!

Tanta confusão, tanta gritaria... Mas quando chega a vez de nossos preciosos doutores mostrarem ao governo que ele estava errado, e provar que a presença dos malignos médicos cubanos no país não era necessária, só um em cada 300 médicos brasileiros se habilitou a, digamos, se embrenhar no mato. Quanto patriotismo! Olhem os mendigos- MENDIGOS!-, gente sem nenhuma experiência profissional que Moore capturou na rua pra pedir um emprego na Nike, loucos para trabalhar. Agora olhem para vocês mesmos, formados, preparados, que literalmente transaram com os livros de medicina por quase dez anos, negando fogo quando o país urge por uma mudança de mentalidade político-social. Eu, ir trabalhar na roça? Ficou doido? É mais divertido dar paulada em Dilma e chamar os cubanos de escravos! Se bem que, contabilizando nossos custos e benefícios, praticamente qualquer trabalhador brasileiro pode considerar-se escravizado.

Alguns médicos dizem que não aceitariam se aventurar como os médicos de Cuba e adjacências pela falta de infraestrutura. Conversa pra boi. Na mente ambiciosa dos formandos, só serve o hospital Sírio-Libanês ou, na falta de vagas, no São Magno da novela das 9. Quer dizer, em alguns postos de saúde por aí, se chega alguém com um osso exposto, o melhor que podem fazer é lavar a ferida com sabão de coco, tentar colocar o osso de volta no lugar e improvisar uma tipóia com o pano de prato. É claro, sem anestesia, porque isso é coisa de rico.

Em vez de ficarem de mimimi com a falta de recursos, deviam era enxergar nela uma oportunidade para revolucionar a medicina nesses buracos de rato para onde os cubanos serão enviados. Vou dar um exemplo. Meu primo e melhor amigo Helder se formou em medicina há alguns anos. Ainda novo na profissão, topou se sujeitar à aventura de deixar família e amigos para trás e ir atender na cidadezinha de Ubaí, MG, um lugar tão pobre que lá falta até ar pro povo. Era de se esperar que depois de alguns meses ele tentasse procurar trabalho numa cidade melhor fornida de recursos, mas ele ainda não arredou o pé de lá, e já são quase cinco anos de afastamento de casa.

Se podemos apontar pelo menos uma coisa positiva dos 12 anos de governo petista, é que eles têm conseguido romper a aura mística que as profissões de renome possuem. Antes de organizar mutirões para cobrar do governo melhores aparelhagem e salários para funcionários do hospital, é preciso mudar a filosofia de trabalho e parar de priorizar a doença em detrimento da cura e da saúde. Claro que esse improviso com médicos estrangeiros não pode e não precisa durar para sempre, mas antes precisar de um médico que de um agente funerário gringo.

*Designer e escritor. Sites:
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