O homem que escapuliu do
gráfico
* Por Mara Narciso
Existem pessoas tão estranhas, tão inabituais, que saem do gráfico,
dando verdadeiros pulos para fora. Bernardo é desse tipo atípico. Funcionário
público, moreno bonito e de voz sedutora, agora com 56 anos, reclama estar
acima do peso, e ter uma circunferência abdominal vergonhosa. Quer emagrecer, e
volta e meia consegue seu intento, mas, por pirraça, de vez em quando o
ponteiro da balança volta a subir. Trouxe a horta para a mesa e visita o pomar
algumas vezes ao dia. Tem intimidade com o sol que banha seu corpo na
caminhada. Bem informado, lê muito, e não desiste de nada que começa.
Há 18 anos, Bernardo achou na sarjeta, drogada e prostituída uma jovem
negra. Seu nome era Laura. Levou-a para casa, lavou sua imundície exterior,
instalou-a em um dos dois quartos da sua modesta casa, e abriu sua vida e seu
coração para ela. Com amor, tentava, através do amparo, reparar também a porção
interior. Desde o começo, a relação foi de pai para filha.
Laura, naquele momento sem droga, gostou do pouso, e disse querer sair
do buraco onde se enfiara. Bernardo sabia quão furado era esse discurso, mas
fingia acreditar. Laura ficava limpa um tempo, mas era vencida pela imposição
orgânica de se drogar. Volta e meia sumia de casa, para ser mais uma vez e
outra, e outra, resgatada, imunda. Entrava em brigas, furtava, roubava, era
presa e desencarcerada pelo pai adotivo, que, generosamente lhe dava novamente
um lar, consideração e respeito e nunca lhe fechou as portas, nem diante dos
seus mais loucos desatinos. Trazida praticamente nos braços, era deixada numa
cadeira sob o chuveiro, e muitas vezes o funcionário teve de dar-lhe banho,
curar suas feridas e infecções, fruto da vida de rua que tinha.
De orientação homossexual, Bernardo foi aos poucos se afastando,
abafando suas buscas por sexo e companhia, especialmente nos períodos em que
sua filha engravidava e, descuidada, acabava deixando um filho depois do outro
para ele cuidar. Ele os criava, cada um deles de pai desconhecido, resultado da
prostituição. Louca pela droga, Laura perdia as contas com os anticoncepcionais
ou se esquecia do preservativo. Bernardo, quando ela estava consciente, fazia a
habitual preleção que todos os pais lúcidos fazem, mas é desnecessário dizer
que era inútil.
Criou os meninos como netos, dando-lhes conforto material e carinho. São
sua família, seus amores, sua razão para voltar para casa. Bons meninos,
amorosos e responsáveis, lhe dão alegria. São dois netos e uma neta. Esta se
inicia na profissão de modelo. É alta, exótica, e chama a atenção. O avô dá-lhe
o suporte necessário. O outro estuda muito, quer fazer curso superior, e tudo
indica que alcançará seu intento. O mais novo ainda é uma criança que pula no
colo do avô e enche-lhe de beijos. Na gravidez, Laura conseguiu, de alguma
maneira, ficar sem as drogas, ou quase, resultado dos insistentes pedidos e do
amor de seu pai, que implorava por isso.
A filha afunda mais e mais uma vez, e quando vem à tona para respirar,
toma um banho de civilidade, cuida de si, da casa e dos filhos por um tempo.
Então, quando se espera que uma rotina se estabeleça, desaparece nas trevas.
Foi esterilizada após o terceiro filho. O pai conseguiu que ligassem as suas
trompas.
Além do amor de pai e avô, nada acontece de forma natural nessa família
conturbada. Mas a vida de penitente avança. E assim, de sustos em sustos,
entremeados com alegrias, esse homem de coração imenso vai vivendo de forma
intensa. A sua vida não corre devagar, dá saltos. O que sentiu e produziu,
entregou aos outros, aos desamparados, os que nada tinham. E por cima do
conjunto de ações um maço de amor, a ponto de esquecer-se de si. Ninguém tem
notícia desse tipo de gente. Não dá IBOPE. Ficam esquecidos pelo caminho. Num
tempo em que apenas a crueldade ganha espaço, quem quer saber que existe pessoa
boa assim? Verdadeiramente estranha. No lugar de puxar tudo para si, distribui
irmamente. Quem entende isso?
*Médica endocrinologista, jornalista profissional,
membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico,
ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
Que triste, e que verdadeiro. Vivemos um tempo em que a bondade e o amor desinteressado chegam a ser vistos com desconfiança. Uma descabida inversão de valores. Excelente, Mara. Abraços.
ResponderExcluirO normal é a pessoa estender uma mão com a outra aberta, por detrás. Ajuda desinteressada, só mesmo na ficção, mas esse homem é real. Obrigada pela passagem e a atenção do comentário, Marcelo.
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