Filhos da humanidade
* Por Raquel Moysés
Bem cedinho, todo dia, deixo meu filho no centro antes de vir para o
campus da universidade. Pelas ruas estreitas, uma maré de crianças e
adolescentes oferece seus passos às calçadas exíguas, desniveladas e
esburacadas. Avistar suas figuras coloridas, desiguais, a caminho das aulas,
faz fluir, de algum lugar misterioso, imensa ternura: sinto que sou um pouco
mãe de cada um deles.
Os pequeninos seguem enlaçados pela mão de algum adulto. Outros, pouco
maiores, já enfrentam sozinhos os riscos das ruas. Os adolescentes, que
raramente caminham em bando em horário tão matutino, revelam no porte o desejo
de agarrar o mundo em pleno vôo. Em manhãs esplêndidas como esta que descrevo,
o sol ilumina suas faces e enche de brilhos os cabelos juvenis, alguns tão
fartos e viçosos. Outros, já consumidos pela química que a indústria da
“beleza” vende sem cessar, através de promessas enganosas de fechar cutículas,
restaurar em um dia ou uma noite os fios que a natureza leva uma vida para dar
cor e viço.
Uma menina, a caminhar pela estreiteza da calçada, me causa desconforto.
Magrinha, fio de prumo, os cabelos em tom azul arroxeado já parecendo minguados
pela ação destrutiva da tinta. Tenho vontade de envolvê-la em uma onda de
carinho, imaginando o que talvez lhe falte para dar sentido à existência. Por
que será que ela se joga nessa “revolução estética”? Rebeldia nos cabelos
azuis?
Logo seu vulto me foge do campo de visão e, enquanto espero na viela
congestionada, meu olhar vai enquadrando, sem escolher, outras figuras de meninos
e meninas, com suas calças jeans estreitas à exaustão, blusas de inverno,
jaquetas e echarpes coloridas, jogadas nos ombros só para enfeitar.
Raramente a luz dos olhos de algum deles lampeja em direção aos meus.
Mas não é só porque o cuidado com o trânsito me impede de fixar olhares
esparsos. Passo a passo pelas estradas do mundo, tenho percebido que os humanos
cada vez menos se “tocam” com os olhos.
Isso faz lembrar a contadora de histórias Gilka Girardello, que, em sua
encantatória oficina de histórias, na igrejinha da UFSC, nos iniciava na arte
de contar a vida, imaginária e real, cantando e passando um limão perfumado de
mão em mão. O gesto simbólico de afago era completado com um brinde de olhares.
E era como se, com os dois lumes com os quais nos enxergamos, festejássemos a
alegria de nos reconhecer.
É difícil sustentar o olhar do outro, mesmo dos que mais amamos, sem nos
sentirmos comovidos ou desconfortáveis. Os olhos nos contam, nos denunciam, nos
falseiam, nos encantam. Prometem delícias, vaguezas ou torpezas. É talvez por
isso que tememos ver espelhados, na luz que emana do outro, nossas fraquezas,
ternuras, invejas. Nossos amores e profundos medos, nossa humanidade mais
desprotegida.
Nas ruas matutinas, é mais difícil ainda vislumbrar os fugidios lumes
dos filhos dos homens, apressados em não chegar atrasados às escolas que, em
maioria, os destinam ao mercado implacável. Penso nisso enquanto me enfronho
pelos caminhos e agasalho com invisível abraço seus vultos juvenis, que me
parecem perdidos em inexorável solitude. Com o olhar, vou acarinhando esses
meninos e meninas enredados no viver. Meus filhos da humanidade. Nossos?!
Enquanto confidencio pensamentos tão íntimos, lembro-me de que, entre
diversos povos originários de nossa América, as crianças de cada um são os
filhos de todos. Cada um é responsável por cuidar dos filhos da humanidade.
Também me vêm, da memória de leituras, palavras que escreveram três
homens estreitados pelo fio invisível que torna irmãos os humanistas de todas
as partes do mundo. Então, já entrando na imensa solidão do campus da UFSC,
imagino que, através dos tempos, ressoem as vozes de três humanistas de “Nuestra
América”. Eles me segredam, com força e ternura, uma certeza que, de tão
singela, parece impossível. “Pátria es humanidad”, diz José Martí. “Todo
lo humano es nuestro”, assevera José Carlos Mariátegui. Sim, nos ensina
Simón Bolívar: “Nosotros somos un pequeño género humano”.
*
Jornalista
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