segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A última barca

* Por Daniel Santos

Quando me mudei para a pracinha do Alto da Boa Vista, tive a sensação de que ali ficaria para sempre, e não apenas devido à excelência do clima. A beleza do cenário lembrava um postal, e isso também contava.

Por toda a vizinhança, onde residiam velhos, na maioria, mansões de inspiração inglesa e alemã progrediam num sítio bastante  arborizado que atraía pequenos animais da floresta e exalava permanente umidade.

Além disso, os vizinhos me pareciam cordatos, embora estranhasse  sua mania de verificar as horas seguidamente e a rapidez com que se metiam em casa quando alguém praticava exercícios físicos na praça.

No mais ... Quer dizer, com o tempo, alguns detalhes passaram a me intrigar. Por exemplo, em algumas casas não havia mais moradores e muitos vizinhos nem cheguei a conhecer direito, porque desapareceram.

Mas desvendei esse mistério num final de madrugada. Regava o jardim, quando um atleta muito magro, talvez maratonista, passou pela praça e chamou o nome de alguém ... que o seguiu, embora a contragosto.

Com os anos, vi que alguns relutavam a seguir o tal corredor, tentavam negociar minutos e até segundos, antes de entregar a casa para sempre, mas, afinal, deixavam-se levar em completo desconsolo.

A minha vez chegou. Saía para comprar pão e vi o maratonista. Vultuoso, ofegante, cianótico, me disse “vamos, a barca já vai partir”. Furioso, atirei-lhe uma pedra. Sempre correndo, ele se foi às gargalhadas!

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Um comentário:

  1. Misteriosas alucinações, que intrigam, desencadeiam suspense, e atiçam a curiosidade do leitor.

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