A guerra de Iranduba
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Maria morava há mais de 13 anos no "Alagadinho", Cacau Pirêra,
distrito do município de Iranduba (AM). Saiu de lá, onde vivia submersa durante
a cheia, para realizar "o sonho de moradia" em área de propriedade do
Estado. Fez roça no quintal. Plantou macaxeira, abacaxi, pimenta de cheiro e
plantas medicinais. Acontece que a área foi grilada por particulares. E na
quarta-feira (25), o trator, protegido pelas botas da polícia, entrou lá,
esmagou plantinhas, esperanças, sonhos. Destruiu tudo.Só deixou lágrimas, fome
e Maria, sem casa, sem roça, sem ter o que dar de comer aos filhos.
- “Vocês tem arco e flecha; a gente tem é bala”. Esse foi o
"argumento" que um policial militar disparou contra uma índia Kokama,
durante a operação dizque “pacífica”, iniciada na segunda-feira (23), para
impedir o acesso a uma área ocupada por indígenas e não-indígenas, na rodovia
Manoel Urbano (AM-070), região metropolitana de Manaus. Usou a
"lógica" colonial do Raposo Tavares, Borba Gato e outros
bandeirantes.
A violência da polícia contra os “invasores” foi ocultada e silenciada a
exemplo do que ocorreu com os bandeirantes. As agressões físicas e os palavrões
com os quais os policiais intimidavam até as mulheres e as crianças - nada
disso emergiu nos relatos. As notícias, como regra geral, registraram uma
“operação pacífica” de reintegração de posse da terra, com atuação "exemplar"
do Estado que colocava um ponto final na “indústria da invasão”. O importante
era que os “supostos índios” saíssem de lá.
"Supostos índios"
A versão dos "escrivães da frota" só foi contestada porque uma
equipe de pesquisadores do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA),
documentou tudo, entre eles a antropóloga Márcia Meneghini, que realizou
trabalho de campo durante os três meses de “invasão”.
- Nesse período - escreve Márcia - descobrimos que não se tratava de uma
“invasão”, mas de um ato de mobilização coletiva em torno da legítima
reivindicação da posse de terra numa área de propriedade do Estado
“supostamente” grilada por particulares. Esse ato de mobilização é chamado de
“ocupação” pelas pessoas que dela participam. Nesse sentido, ela é vivida e
representada como algo que lhes pertence: a terra. Recebe o nome de “Comunidade
Deus é por nós”.
A extensão e localização da área variam conforme quem divulga: Km 5 ou
Km 6? Quantos são: 10 mil ou 18 mil? O que se sabe é que entre eles há centenas
de índios, mas até isso os zeguedegues cretinos questionam com indagações sobre
se os "invasores" tem RANI (Registro Administrativo de Nascimento
Indígena), se usam cocar, tanga, arco, flecha. Em caso contrário, concluem que
não são 'índios de verdade', são 'civilizados', 'aculturados' e portanto -
incrível! - sem direito à terra. Surge na imprensa nova categoria ignorada por
antropólogos - o “suposto índio”.
Mas afinal o que seria esse “suposto índio”, que nunca é ouvido? É uma
categoria criada para esconder um problema antigo - a distribuição de terra na
região metropolitana de Manaus. Ela designa índios que migraram para Manaus.
São Kokama, Kambeba, Paumari, Mura, Arara, Tukano, Tuyuka, Sateré-Mawé, Macuxi,
Tariano, Piratapuia, Carapana - distribuídos em 1.040 famílias - segundo
informaram os índios a Márcia Meneghini, que acompanhou neste sábado (28) a
operação de reintegração de posse, quando a FUNAI ainda negociava a permanência
dos indígenas na área.
Nem o juiz, nem a Polícia e nem a mídia ouviram os
pesquisadores da Nova Cartografia Social da Amazônia. Se fizessem a consulta,
saberiam que as manifestações surgem
porque uma apropriação desigual da terra vem definindo a configuração da
cidade. Manaus tem sua história marcada pela prática do Estado de conceder
terras a particulares para benefício de grupos do poder. Mas quando grupos
étnicos se mobilizam, para juntos reivindicarem a posse comum de terra do
Estado, são rapidamente taxados de “supostos índios” com o objetivo de
desqualificá-los.
Sabá Kokama
- “Cuidado com os índios. Não se aproxime deles. Eles podem te prender
como refém. Vá até onde está a polícia”. Este foi o conselho que um policial
deu à antropóloga Márcia Meneghini, quando ela perguntou se poderia entrar na
área. Saíam os “invasores” e entravam mais de 400 policiais. Um helicóptero,
com um homem armado, sobrevoava o local. O policial não podia imaginar que
aquela mulher branca, alta, magrela, de mochila e tênis, estava com medo dele -
da polícia - e não dos índios.
Márcia cortou caminho pelo mato, longe da vista do policial, para entrar
no lado dos “invasores”, dos “perigosos”. Fugiu da barricada policial. Foi
encontrar com um dos líderes do movimento, Sebastião Castilho Gomes, mais
conhecido como Sabá Kokama ou Sabá. Ele nasceu em Sapotal, Tabatinga, no Alto
Solimões (AM). Começou no movimento indígena lutando com os Tikuna pela
demarcação das terras indígenas Éware I e Éware II em Tabatinga. Já trabalhou
na FUNAI e foi vice-presidente da União dos Povos Indígenas de Manaus (UPIM).
A atuação de Sebastião Kokama incomoda, porque chama a atenção do poder
público para a problemática de moradia, saúde, educação, não apenas de
indígenas, mas também de não indígenas, que vivem nas periferias da cidade. Em
2011, ele participou do “Movimento indígena por uma vida melhor”, conseguindo
moradia para muitos índios. Hoje, o Parque das Nações Indígenas, no Tarumã, na
zona oeste da cidade, é resultado dessa luta. "Falar numa “indústria da
invasão” por “supostos índios” e “invasores” é camuflar o problema da
terra" - diz a antropóloga.
Acusar os “invasores” de crime de degradação ambiental é outra forma de
mudar o foco das discussões. O terreno reivindicado é extenso e abrange um
grande areal. Na parte baixa, há igarapés entre as árvores da floresta.
Sebastião Kokama comentou com a antropóloga que a floresta em questão não é
nativa: “Quando chegamos era capoeira. Ali quem tirou foi o próprio governo
para botar terra para ali [obra da Ponte Rio Negro]. Quem tirou as madeiras
daqui não foram os índios, não. Foram as olarias e os empresários. Vocês já
viram índio com caçamba aqui dentro?”.
Mobilização nacional
A polícia não quer conversa, usa a porrada como argumento. Casos de
violência física foram relatados aos pesquisadores. O objetivo é isolar a área,
quem está fora não entra. Um Tuyuka, de 16 anos, mostrou as marcas no corpo da
agressão sofrida quando retornava com água e mantimentos ao local na manhã de
segunda-feira (23). “Me algemaram e me jogaram dentro do camburão. O policial
me trancou com ele sozinho na sala e disse: ‘agora nós vamos conversar’. Puxou
o cassetete dele. O delegado [de Iranduba] chegou. [Eles] me seguraram e me
deram um murro”, disse o menor.
O rapaz também contou que foi intimidado: “Eu me senti ameaçado, por
[ele] dizer que ia descarregar uma pistola na minha cara”. Em seguida, segundo
o menor, uma equipe do Conselho Tutelar apareceu e impediu que a violência
continuasse. “Começaram a me dar guaraná, café, bolacha pra comer. Aí queriam
me dar um monte de recurso: bolsa-escola, bolsa-família, minha casa-minha vida.
Eu falei que não queria nenhuma dessas coisas. Falei que eu queria o meu
direito. Que eles não podiam ter me batido. Não estava fazendo nada”.
Casas foram destruídas por tratores. Sem poder entrar, as pessoas se aglomeravam
do lado de fora, relatando a violência da polícia. “Uma jovem, aqui, foi apoiar
sua mãe, e um policial do Iranduba bateu nela. Todo mundo viu, agora ninguém
pode falar nada, porque, se falar, ele volta de tarde e bate na pessoa”,
afirmou J.W, cuja casa e objetos pessoais foram destruídos. “Estão quebrando
tudo. Minhas coisas lá dentro estão quebradas. Dá até vontade de chorar. Já
pensou um homem de 51 anos chorando? Mas é triste. A gente não tem onde morar”,
continuou.
O Kokama, D.C., 20 anos, conseguiu fugir depois de ter sido agredido e
algemado, quando tentava retirar seus pertences de sua casa. Levou um tapa na
cara. "No descuido deles, eu puxei meu braço e sai correndo. Pulei a cerca
e eles correndo atrás de mim. Só não me pegaram por causa do resto dos
guerreiros que fecharam a rua para eles não passar”, explicou.
A guerra de Iranduba acontece no momento em que a bancada ruralista no
Congresso Nacional lança poderosa ofensiva para anular os direitos dos índios e
quilombolas garantidos pela Constituição Federal que comemora, agora, em
outubro, 25 anos de vigência. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil está
convocando, entre 30 de setembro e 5 de outubro, uma mobilização nacional em
defesa dos direitos dos índios.
No sábado (28) à tarde, Michelle Kokama informou que a operação de
retirada de índios e não-índios havia terminado. É uma vergonha para o
Amazonas, o maior Estado do Brasil, onde a polícia dá porrada em índios que
buscam um lugar para morar. Os amazonenses deviam fazer como os cariocas
fizeram com o Sérgio Cabral: infernizar a vida do Omar Aziz. Cadê o José
Ricardo Wendling e o Marcelo Ramos que estão sempre sintonizados com os
interesses populares?
P.S. - Versão ampliada daquela que foi impressa no Diário do Amazonas,
escrita a quatro mãos com Márcia Meneghini. Fotos de M.Meneghini e Glademir
Sales. Ilustração Bambi&Mayara Advertising.
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Jornalista e historiador
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