Seu João de Amorim
* Por
Urda Alice Klueger
(Para o Orion Farias de
Amorim, que ainda deve estar em algum lugar)
Penso se alguém ainda lembra dele neste mundo de meu Deus, além dos
filhos, caso vivam – mas como ele está forte dentro de mim por estes dias!
Passaram-se quase sessenta anos, desde então – talvez eu tivesse três anos,
talvez dois, arriscaria dizer, talvez, a entrada dos quatro. Sei que ele era
pai da minha madrinha de Crisma, uma moca muito bonita e jovem chamada Ana
Olívia Farias de Amorim, e sua mulher era a Dona Honória Farias de Amorim,
d’onde eu deduzo que o nome completo dele era seu João de Amorim. Os outros
filhos eram a Alair, da qual lembro muito de uma fascinante foto de quando ela
trabalhava na Cill, a loja de discos que havia em Blumenau, e o Orion, que era
chamado de Ório, e que muitos anos mais tarde soube que trabalhava na imprensa
oficial do Estado de Santa Catarina. Era um homem de bom gosto: ao filho homem
dera o nome de uma estrela – as meninas eram Ana Olívia e Alair – quem sabe
ainda encontro o Ório na facebook, já que as meninas mudaram os nomes quando
casaram e já não recordo mais tantos detalhes desta minha vida que já está
ficando longa...
(Lembro bem da minha Crisma, no entanto. Era muitíssimo pequena, e ela
se resumiu em um solene homem parado diante de mim carregando uma travessa
cheia de arroz cozido. Sempre me disseram que não era arroz, mas algodão usado
para a unção, mas até hoje tenho a certeza de que era arroz!)
Seu João era barbeiro, profissão importante daqueles tempos. A barbearia
era algo como uma sala de bate papo das redes sociais de hoje, e presidir a uma
era ter sua importância na escala social. E ele foi o meu primeiro morto.
Lembro como se falava baixinho, lá em casa, para se dizer que o seu João
estava doente do pulmão, e também lembro quando a gente ia vê-lo lá na Rua XV
nr. 1392, onde ele morava, e ele estava de cama, e tossia e estava fraco, mas
era tão bom, tão doce comigo, menininha de nada, que ainda nada compreendia do
mundo. Lembro com doçura daquele seu João de olhos febris e que ainda está vivo
comigo até hoje, e de algumas coisas que ele dizia, como a que o Ório tinha que
ter sempre uns trocados para sair, pois rapazes não poderiam sair de casa sem
um dinheirinho no bolso – imagino que ele pensava no guaraná ou no cinema que o
Orion fosse pagar para uma mocinha.
Então, um dia, seu João morreu. Eu não vi sua morte, nem seu velório,
nem seu enterro – era pequena demais para tais coisas – mas ninguém ainda
morrera, no meu mundo, e seu João acabou sendo o primeiro morto que a vida me
trouxe. Sua morte entrou na minha casa em forma de uma encorpada colcha amarela
– a família estava se desfazendo de tudo o que fora dele, para não ficar triste
quando olhasse, penso, e a colcha amarela veio bater na nossa casa. Éramos
todos muito pobres, então, mas havia alguém mais pobre nas redondezes: uma
mulher chamada Maria Viola, que morava na nossa rua. A colcha era para ela com
seus muitos filhinhos, e lembro agora dessa Maria Viola, uma mulher alegre que
passava pela nossa casa e me encantava. Sabia que ela falava que, quando a fome
que tinha era muita, tomava uma caneca de água com sal, e depois outra caneca
com água sem sal, e fazia de conta que tinha comido, e tocava a vida
alegremente, como se tivesse comido bem. Maria Viola era daqueles pobres que
faziam parte das comunidades de então, conforme tão claramente nos explica
Milton Santos[1] e era através dela que
a comunidade podia exercer a caridade pregada pela Igreja daqueles tempos.
Assim, ela herdou a colcha amarela do seu João, que esteve por alguns dias na
nossa casa, à espera dela, e eu não tocaria naquela colcha por nada do mundo,
pois dentro da pequena criança que eu era criara-se como que um misticismo,
algo que ainda hoje não sei explicar, pois aquela era a colcha de um morto.
Seu João de Amorim, pai da minha dindinha, meu primeiro morto, quem
ainda se lembra do Sr. além de mim?
[1] SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – do pensamento único à
consciência universal. São Paulo/Rio: Record, 2000. “A pobreza incluída”
(p. 70 – diferente da atual “Pobreza estrutural globalizada”.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
Como dizia a minha finada mãezinha: dez anos depois da minha morte, pouca importância terá quem eu fui ou quanto tempo vivi. Ninguém se lembrará de nada mesmo. Interessante, é que depois que os filhos morrem, nenhum interesse haverá no túmulo que ficará abandonado. Estranha é a vida. Também me lembro do meu primeiro morto (eu tinha uns seis a sete anos). O nome dele era Afonso, era amigo do meu pai e dono de uma loja chamada O Camiseiro. O empregado da loja, de nome Roque casou-se com a viúva.
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