O menino que soltava lua
* Por Mara Narciso
Era uma vez um menino que tinha poderes mágicos. Ninguém compreendia
seus superpoderes que envolviam os quatro elementos: a água, o ar, a terra e o
fogo. Tinha amiguinhos invisíveis e falava com eles. Os adultos achavam que
eles eram muito presentes. Crianças sós costumam criar amigos imaginários. Mas
ele não era só. Tinha irmãos e companhia o tempo todo.
O menino poderoso crescia, e mesmo tendo crianças em volta, seus
amiguinhos continuavam aparecendo. Traziam boas novas, e não o atrapalhavam
tanto. Eram companheiros e o acompanhavam por boa parte do caminho. Na escola
saia-se bem, em casa era inquieto, fazendo travessuras e conversando com os
fantasminhas. Nisso, era diferente dos irmãos que não tinham essa habilidade.
Zelosos, os pais o levaram ao psiquiatra, mas receoso de perder essa capacidade
de ver, compreender e relacionar-se com o além, o menino mágico cuspia as
pílulas receitadas. Rejeitou o tratamento, e por nada no mundo queria perder
essa capacidade que poucos compreendiam.
Mas, assim como o menino mágico lamenta que seus filhos venham a
crescer, ele tornou-se adulto e adquiriu novos dons. Recebia mensagens do outro
mundo e orientava pessoas. Estudou, leu muito, fez faculdade, mestrado,
enveredou por algumas profissões paralelas, apenas por diversão. Alegre,
engraçado, dramático e de gestual amplo, foi o rei da festa, o centro das
atenções de amigos e aduladores. Trabalhando desde adolescente, construiu
praticamente um império, se fez rico, mudou a paisagem, deu festas, contratou
cantores famosos para baile particular, correu mundo, namorou as mais bonitas
mulheres, gastou a rodo, se realizou em todos os aspectos, sendo muito feliz.
Opinou sobre tudo com acidez e coragem, angariou invejosos e inimigos,
confiou demais, acertou como também errou e viu seu mundo praticamente ruir.
Embora desnorteado, a princípio, tratou de buscar outro rumo. Enquanto a
realidade anterior sucumbia, mesmo que ainda possa em parte ser resgatada,
encontrou o paraíso. Ou melhor, tratou de construí-lo com todo o dinamismo que
lhe é característico. Não tem preguiça. Neste novo ambiente, fez amigos
sinceros, pois valoriza as pessoas, e estas lhe mostram genuíno apreço. Começou
do zero, contou moedas, aprendeu a fazer comida, a andar sem documento, girar
por aí de chinelo e bicicleta, entendendo melhor seu papel no mundo. Melancolia
ainda o assalta, mas concretiza novos sonhos sentindo o sol no rosto, a suave
brisa e a liberdade de quem jogou fora velhos preconceitos, sem adquirir outros
novos.
Não largou os amiguinhos de outrora, que ainda lhe mandam recados
através de poemas que funcionaram a princípio como uma catarse e desde que
melhorou, são registrados para seu deleite. Mostra apenas para pessoas
escolhidas. Ainda assim, faz da sua vida anterior ferramenta para ajudar
crianças em creches, e não se importa, de tempos em tempos, em voltar à origem
para trabalhar apoiando e fazendo sopa para elas. Quantos se preocupam com quem
não tem nada? Os bons e aqueles que viram duas realidades, a fartura e a
escassez.
No seu novo mundo, as estradinhas para o norte são fofas e cobertas de
areia branca, têm o braço de mar e casinholas, em boa parte amarelas,
enfeitando o caminho com suas flores. A bela paisagem ganha mais cor pela
plasticidade das músicas que se espalham mato adentro, durante o passeio. E
para o sul, novos e encantadores cenários. Os sensíveis veem mais do que está
lá. Abraçam com encantamento cada animal e vegetal visto, além das construções
peculiares como antigas igrejinhas, pontes e fazendas coloniais. Há maravilhas
por todos os lados, construídas com a força da alegria e da felicidade de quem
traz festa no coração embolada com uma tristeza que insiste em não ir embora.
O mar está diante dos seus olhos. O coqueiral ronda as suas costas, e
sua adorável cabana, o seu refúgio, está a duas quadras. O vento leste sopra
trazendo um friozinho, que arrepia a pele bronzeada. De súbito, uma lua pálida,
quarto crescente e tímida aparece lá no alto, sobre o mar esverdeado, ofuscante
pelo sol do meio-dia. Ao vê-la tão serena, doce e hesitante, o homem fala
convicto: em dias especiais eu solto lua. Empino-a feito papagaio com esta
corda aqui. E não faço isso para todo mundo não, apenas para quem eu gosto
muito.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Outro excelente texto, Mara, de uma beleza comovente. Pena que nossos 256 seguidores não tenham o hábito de comentar (e não entendo o por quê dessa omissão. Enfim...). Excelente abordagem e linguagem, como sempre, corretíssima e precisa, modelo de boa literatura. Parabéns, mais uma vez!!!
ResponderExcluirA pessoa que inspirou o texto contou-me essas passagens e eu gostei muito de recontá-las, embora, vendo agora, ache que há excesso de adjetivos. A emoção fez-me exceder. Grata pela consideração de sempre, Pedro.
ExcluirBelo texto, quase uma fábula. Uma lição de vida, e da importância, dentro dela, do autoconhecimento e da humildade. Muito bom, Mara.
ResponderExcluirAgradecida pelo carinho de sempre, Marcelo.
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