As gordas nas telenovelas e na vida real
* Por
Urariano Mota
Leio nos jornais que Perséfone, a personagem obesa da novela “Amor à
Vida”, é um dos núcleos de comédia na trama. Na telenovela, diferente da deusa
na mitologia, Perséfone é mulher carente e virgem com mais de 30 anos. Vale
dizer, ela é um amontoado de insucessos, piadas e desastres. Os colunistas de
sucesso e superfície perguntam: será que a enfermeira virgem tem jeito? Será
que um dia ela vai se apaixonar por alguém, ou pelo menos levar um homem para a
cama?
Não sei se o grande público vive tão brutalizado que não vê nem percebe
a mofa e zombaria que a telenovela faz com a vida de todos. Estão rindo de quê?
Não veem que zombam das suas mulheres nas cozinhas, nos ônibus, nas ruas, no
trabalho, tão obesas quanto a caricatura da novela? Ao que parece, não, porque
a cada capítulo os jornais repetem e comentam a última de Perséfone, que ora
vai para uma festinha atrás de um novo alvo e entra na mira de dois bandidos,
ora sai correndo do quarto, com as roupas de um rapaz nas mãos, quando seu robe
acaba esbarrando numa das velas românticas e pega fogo. Que engraçado, que
comédia. O quanto é diferente essa personagem risível de uma pessoa real. Que
diferença da tevê para uma gorda de nossas vidas. Os escritores que vemos o
Brasil com a memória do coração temos outra realidade. Deixo para os leitores
um trecho do meu romance O filho renegado de Deus.
Para os vizinhos, dona Maria era o que era, e com isso eles queriam
dizer que ela era a sua pessoa física apenas, carnes, ossos e roupas. Deste
modo e maneiras eles a viam: mulher – e aqui vai um gênero e universo de
entendimento bárbaro -, gorda, baixinha, com um aspecto, ar, que não devia ser
o da sua condição. Viam como um contrassenso absoluto que aquela pessoa, digo,
aquela mulher gorda e baixa, não se desse conta da sua espécie de gente. Num
tempo das divas glamurosas do cinema, num tempo de massacre da beleza anônima
do povo suburbano, dona Maria era, não passava de “uma albacora”. Crua, essa
palavra além da redução a um peixe, pois mulheres apenas se comiam e se tornar
alimento era sua razão de ser, tal definição, difamação de Maria,
amesquinhava-a numa coisa aquém do que entendiam o gênero feminino, pois era,
além de mulher, gorda e baixinha, larga como as albacoras, que não eram uma
dieta ideal para os comedores de carne bovina. Peixe gordo, congelado, a se
comer apenas nas sextas-feiras santas, em sinal de penitência.
É curioso, no entanto, como as mulheres vizinhas guardavam de Maria
outra visão. Elas a reconheciam como uma senhora decidida, solidária e
resguardada de merecer piedade. Ela rejeitava, “me repugna”, como dizia,
qualquer piedade para a sua condição. Mulher brava, de coragem e de raiva. Do
gênero e da forma daqueles bravos a quem os fracos não temem, porque sabem que
essa bravura se dirige somente contra o injusto mais forte. Lídia, a sua jovem
comadre, dela falaria na lembrança em 2012: “Ela era uma mulher bonita, de
rostinho redondo, com os olhos pequeninos, muito vivos. Para mim, era uma
boneca índia”. E com os olhos rasos d’água desse modo a recordava a se balançar
na cadeira, como a lembrar em silêncio a injustiça que atravessa a vida de
mulheres como Maria, uma injustiça que também era feita contra ela mesma,
Lídia, depois de passar por fracassados casamentos. A feminilidade, nelas, para
elas, era um sofrimento. O que nos homens era desejo, danação, para elas era um
vexame, como um dia na Ponte Duarte Coelho em que Lídia recebeu um vento tão
forte, na chuva, que a impediu de caminhar, porque a saia levantou e as coxas
ficaram à mostra. “Dona Maria era muito bonita, com os olhos miúdos,
negrinhos”, repete. E cala, e embarga a voz. “Vocês não querem sapoti? Tá
fresquinho”, oferece.
Em Jimeralto, que a ouve, dá uma bruta e brutal vontade de a abraçar, de
lhe dizer “eu compreendo os seus sapotis, eu compreendo a sua dor, eu sei da
sua infelicidade, eu sei do que você não se queixa, do que a magoa, eu sei, amiga
da minha mãe”. E mais, amarga como uma proposta e uma promessa que é uma
formulação de princípio: “Eu não vou calar o seu mundo!”. Ele sabe, e não diz
nem a si mesmo, que revê em Lídia aquela Maria que se foi tão pletórica,
vermelha, no vigor e sangue farto na altura dos seus 30 anos. Ah, é da sua
natureza de homem a reencarnação, ah, é do seu gênero, gênese e ser de
transmigração, como se o espírito quisesse um novo corpo para uma vida que não
foi possível. Dói nele uma dorzinha doce e fina porque Lídia não é a sua mãe,
mas sabe que por ela será capaz de a ouvir e de lhe falar. Com a intensidade
aguda de um violino em uma romanza, naquela, ele sabe, guardada em seu
silêncio, naquela maldita e fina romanza número 2 em fá maior. Porque tudo
então lhe recorda a senhora gorda, albacora, albacora brava e bonita como uma
bonequinha índia.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”,
cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
A ditadura social quase que só dá espaço para as gordas em novelas de magras para fazer rir. Lamentável!
ResponderExcluir