Antes da Globalização
Digital, mas já em Cadeia Nacional
* Por Mara Narciso
Amargando estar só nas noites dos seus ainda não casados 38 anos,
Norminha distraia-se ouvindo a Rádio Nacional de Brasília, esculpindo em seus
sonhos ideias estapafúrdias de gente pra lá de criativa. As almas sem um par,
as mariposas apaixonadas, os solteiros carentes escreviam cartas, daquelas de
papel, envelopadas e seladas, enviando-as para o Distrito Federal, para que o
locutor da madrugada fizesse uma seleção, para ler algumas delas, e a pessoa
escolhida pela sorte grande ficava emocionada ao ouvir sua história ir ao ar.
Era lida para todo Brasil, e ainda poderia redundar numa resposta, uma amizade
e quem sabe um namoro ou algo mais?
Viciada, todos os dias, noite alta, Norminha gastava tempo e algum
dinheiro telefonando para os emissários de diversas cartas, mas nada de
importante tinha acontecido. Decidiu escrever à Rádio Nacional contando uma
história de vida, com todos os detalhes, de alguém que tinha morado na capital,
feito faculdade por lá, conhecido alguém, engravidado, se casado, tido um
filho, e depois, por incompatibilidade universal dos diversos aspectos humanos,
tinha se separado. Essa pessoa estava só e queria casar-se de novo. Foram duas
laudas de manifestação, dores e sofrimentos.
O movimento do programa era grande e a concorrência alta. A
intermediação da Rádio Nacional se dava de alguma maneira, segurando ou
repassando dados dos participantes. O fato é que a carta de Norminha foi
sorteada e falada ao microfone. Trazia diversos pormenores, desencontros,
brigas, tristeza e abandono. Alguns rapazes se interessaram, mandaram cartas, e
telefonaram. Um deles, João, também separado de modo traumático devido à
infidelidade da esposa, foi quem mais se identificou com a história de
Norminha. Depois de falar ao telefone, quis conhecê-la. A distância era grande,
porém não precisava sair do estado. Marcaram tudo. Feita a mala, o rapaz foi à
cidade de Norminha, indo de ônibus, e ao chegar ao destino, lá estava a
comissão de recepção. Em vez de uma única mulher, havia duas, e a surpresa:
Norminha tinha escrito a história da irmã, Neusa, e não a sua. E, embora João
tivesse gostado da escrita da primeira, gostou da história e da pessoa da
segunda. Esclarecido o enredo, entendeu-se com a irmã, e não com a missivista.
O momento foi algo constrangedor e ao mesmo tempo lotado de surpresas,
pois, Neusa já sabia do imbróglio, e tanto era assim que na última hora havia
topado ir à rodoviária. O casal era muito diferente, mas a simpatia foi mútua,
e começaram a se conhecer. O rapaz hospedou-se num hotel próximo, ficou por
alguns dias na cidade, e quando foi embora prometeu voltar em breve.
Norminha não se aborreceu. No final ficou parecendo que ela havia
montado tudo para de fato recasar a irmã. Não deu outra. João vendeu o que
tinha na cidade natal, e veio de mudança. Após as apresentações familiares e as
formalidades de praxe, e um pouco de meio de campo, foram morar juntos por um
tempo, tiveram um filho – o menino do primeiro casamento de Neusa também ficou
com eles, e então se casaram oficialmente.
Viveram felizes para sempre? A realidade não é bem assim. Aconteceu uma
vida normal de erros e acertos como todas as outras, com seus momentos bons,
suas alegrias, e tristezas. Mas formaram um casal pacífico que se respeita. São
gente civilizada e de fácil convívio.
Em nenhum momento, Norminha manifestou frustração. Ficou satisfeita com
o arranjo, e continuou ouvindo a Rádio Nacional, seu vício, sua paixão. Não se
casou e ajudou a criar os sobrinhos. Trabalhou muito e teve também suas
alegrias, viagens e namoros.
Vinte e dois anos se passaram e hoje, a internet com seus infindáveis
sites de relacionamento/namoro, informa que de 3 pessoas que fazem cadastro,
pelo menos uma arruma um relacionamento. Nos primórdios dos cupidos analógicos,
das estações de rádio ancestrais, as linhas tortas já fechavam suas histórias,
enquanto agora, os bytes digitais precisam dar seus pulos para concretizar
sonhos impossíveis, com pessoas reais ou inventadas, com histórias verdadeiras
ou frutos de ficção. A esperteza fica maior a cada dia e a desconfiança impera.
É bom que não se leve para casa uma pessoa com a qual se teclou por meia dúzia
de vezes. Há várias provas de que esse tipo de atitude envolve riscos. “Mas
viver é perigoso”, disse mil vezes Riobaldo.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Infelizmente, nossos leitores seguem me decepcionando, por sua omissão. Não comentam os textos postados no Literário, por melhores e mais úteis que sejam, como é este caso, do seu. Aliás, ultimamente, o simples acesso a este espaço caiu bruscamente, em decorrência de uma afirmação, falsa, de que ele estaria contaminado por vírus. Não está! Constato isso pelo contador de acessos. Até o início do ano, o número de visitas ao Literário girava ao redor de 500 por dia. Agora, caiu para cem. As pessoas não gostam, mesmo, de pensar. Preferem o monte de baboseiras de que a internet é farta. Feito o desabafo, parabenizo-a, mais uma vez, pelo excelente texto, o que, aliás, é louvável rotina, em se tratando de quem escreve tão bem, quer na forma, quer no conteúdo, como você. Pena que quem deveria se manifestar, ou seja, nossos leitores, prefira a cômoda, inútil e muitas vezes covarde omissão.
ResponderExcluirObrigada Pedro, pelo estoicismo admirável. Gosto muito dos textos postados e raramente não os leio. Agradeço seu esforço, e continuo divulgando o Literário no Facebook.
ExcluirDa velha e boa Rádio Nacional ao Instagram, o mesmo ser humano em busca de si e de um outro que lhe complete - que pode chegar ou não. Belo texto, amiga Mara. Abraços.
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