segunda-feira, 8 de julho de 2013

Páginas de um clássico

* Por Daniel Santos

No aniversário de meu avô, encontrei-o lendo jornal na cozinha da sua pequena casa. Lia com tal interesse que fiquei curioso e, ao consultar a data, a surpresa: a publicação, já amarelada, era de muitas semanas atrás!

A rigor, nem me surpreendi tanto, porque há tempos ele abolira certas distinções entre passado, presente e futuro e criara um conceito muito próprio de realidade; daí, sua suposta negligência com informações.

Alienava-se? Não! Apenas se cansara da mesmice de notícias que se repetiam mês a mês. De certa forma, tal ocorria com ele. Costumava, por isso, resmungar de si para si “êta, vidinha besta que não passa nunca!”

Mas ia levando. E lendo. Só que sem a tensão de quem se deixa atingir pela notícia. Ele estava além disso. Na parte final da vida, perdera certa aderência à realidade e afeiçoara-se à cultura ... que explica o fato.

Nunca fora homem de letras mas, a partir da idade em que  se começa a elaborar a própria síntese, dava importância a toda leitura, assumia um ar solene, como se diante da Bíblia ou de Grandes Sertões.

No final da festa-surpresa que lhe preparamos amigos e parentes, vovô se despediu de nós na varanda, altaneiro, os dois braços abertos como as páginas de um desses livros definitivos, de um clássico – o meu.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.


 

Um comentário:

  1. Um tantão de filosofia de vida nessa descrição de quem, pela vivência, acabou ficando acima de definições.

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