Páginas de um clássico
* Por Daniel Santos
No
aniversário de meu avô, encontrei-o lendo jornal na cozinha da sua pequena
casa. Lia com tal interesse que fiquei curioso e, ao consultar a data, a
surpresa: a publicação, já amarelada, era de muitas semanas atrás!
A
rigor, nem me surpreendi tanto, porque há tempos ele abolira certas distinções
entre passado, presente e futuro e criara um conceito muito próprio de
realidade; daí, sua suposta negligência com informações.
Alienava-se?
Não! Apenas se cansara da mesmice de notícias que se repetiam mês a mês. De
certa forma, tal ocorria com ele. Costumava, por isso, resmungar de si para si
“êta, vidinha besta que não passa nunca!”
Mas
ia levando. E lendo. Só que sem a tensão de quem se deixa atingir pela notícia.
Ele estava além disso. Na parte final da vida, perdera certa aderência à
realidade e afeiçoara-se à cultura ... que explica o fato.
Nunca
fora homem de letras mas, a partir da idade em que se começa a elaborar a própria síntese, dava
importância a toda leitura, assumia um ar solene, como se diante da Bíblia ou
de Grandes Sertões.
No
final da festa-surpresa que lhe preparamos amigos e parentes, vovô se despediu
de nós na varanda, altaneiro, os dois braços abertos como as páginas de um
desses livros definitivos, de um clássico – o meu.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e
redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de
São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou
"A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e
"Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o
romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para
obras em fase de conclusão, em 2001.
Um tantão de filosofia de vida nessa descrição de quem, pela vivência, acabou ficando acima de definições.
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