O canto da sereia
* Por Daniel Santos
Enquanto
preparava o almoço, minha mãe cantava. Ia, então, espiá-la na cozinha, onde a
encontrava sempre séria, mas não sisuda, manchas de farinha no avental e ombros
curvados para diante em permanente recato.
Aquele
era seu ambiente, um lugar pacífico que a umidade dos azulejos tornava ainda
mais confortável. Toda aquela atmosfera respirava tolerância, acolhimento, e
qualquer pecador encontrava ali seu perdão.
Sim,
ela cantava. Baixinho, às vezes quase sibilante, tão inaudível quanto o cicio
da cortina do basculante quando ao vento. E cantava com alegria, embora alegria
sem trombetas, que acertava sempre na dose.
Havia
na sua melodia algo de religioso. Ou algo de sumamente sedutor, tão ou mais que
o canto das sereias? Talvez as duas coisas. Porque ela sempre nos atraía à
cozinha para confortar estômagos e espíritos.
Tinha
esse talento de apaziguar criaturas transtornadas, como meu pai, por exemplo,
que sempre chegava mal-humorado do trabalho. No entanto, desdobrava-se em
sorrisos logo após algumas colheradas de sopa.
Porque
havia naquelas suas poções um aliciamento à cordura que batia direto na alma.
Se alcançava o pretendido, sentia-se vitoriosa. E feliz. Tanto que, tarde da
noite, eu ainda a ouvia cantar. E assim adormecia.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e
redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de
São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou
"A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e
"Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o
romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para
obras em fase de conclusão, em 2001.
Cotidiano aparentemente banal transformado em poesia.
ResponderExcluirDestaco: "ela sempre nos atraía à cozinha para confortar estômagos e espíritos."
Vida medíocre e espírito grandioso. Parabéns!