Chuva, papéis picados e cravos brancos
* Por
Marco Albertim
A
notícia de que os operários de Suape pararam as máquinas não insuflou os
ânimos; percorreu a conversa ruidosa dos diversos grupos ocupando a Praça do
Derby. A notícia... Ora, a notícia acrescentou um dado a mais na rotina dos
manifestantes entregues a relatos de fatos incomuns; sem sustos, sem
perplexidade no juízo já familiar ao uso do asfalto da avenida como o piso da
própria casa.
Chovera. O chão arenoso
da praça cobriu-se de pequenas poças. Os arcos de ferro protegendo os jardins
gramados, em que pese a pouca altura, não foram ultrapassados para atalhos em
direção à avenida. Os carros de som, à moda de trio elétrico, estacionados na
via menor junto à Avenida Agamenon Magalhães, conferiam estranheza à multidão
sem elegância nas roupas, inda que multicor.
O estrugido das caixas
de som não intimidou a conversa miúda dos grupos. Sob o verde dos oitizeiros,
dos sombreiros, os grupos exibiam a cor de sua escolha; o brilho nas camisas
dava conta de um luzeiro de ideias; dir-se-ia uma ideologia enfunada de
orgulho. O vermelho, o brilhoso vermelho indiferente ao marrom pastoso das
águas do canal do Derby, predominou; predominou para emoldurar a peleja unida
das centrais sindicais responsáveis pela marcha.
O ajuntamento começou
às 14h; às 15h30 começou a se arrastar rumo à Conde da Boa Vista. O carro de
som à frente de mais sete, coberto com faixas das centrais sindicais,
reiterando ser a data o Dia Nacional de Lutas. Em cima, um dirigente de cada
uma das centrais. A turba da UGT, empunhando balões plásticos luminosos, azuis
e brancos, chegara por derradeiro. Vinda da Conde da Boa Vista, calhou de ficar
à frente da marcha. Um prurido de escrúpulo a fez parar; convinha reiterar de
físico inteiro o sentimento de unidade. A menos de cinco metros da primeira
leva que viera do Derby, a UGT voltou para a Avenida Conde da Boa Vista. A
unidade foi mantida, inda que incitada pela vaidade da UGT.
A patrulha da PM
postou-se no lugar de costume, no pátio do posto de gasolina na esquina da
avenida; doze policiais, incluindo moças de rostos doces; ostentando coletes à
prova de balas, sem jeito de guerreiras, a beleza escondida no brim macio da
farda. Nos olhos, um viés de pesar por não estarem de calça jeans sob a camisa
de algodão ostentando dizeres. Os moços são ruidosos, por isso riem. Fazer o
quê...?
A multidão não se
comprime; há espaços entre uma turba e outra. Do alto dos edifícios, há
dificuldade para estimar a quantidade de manifestantes. Sabe-se que o estrugido
das caixas de som repercute nas vidraças, interrompe a sesta dos padres do Lar
Sacerdotal, único na avenida, ali escolhido por ser o local com menos barulho
na artéria. Há espaços, mas a multidão arrasta-se sem pressa. Já passam das
16h30. Uma chuva fina, persistente, acode os suarentos. No meio do percurso, em
frente à Faculdade de Filosofia, a patrulha da PM que monitora a marcha, aborda
um moço alto, de ombros largos. Seu rosto está coberto por um capuz preto –
dois furos para os olhos, dois para os narizes e outro mais largo para a boca;
todo o seu corpo, de resto, é um manto negro.
- O que você tem aí
dentro? – quer saber o major que comanda a patrulha. Sem pedir licença, remove
o disfarce do rosto do moço.
A sacola é revistada; é
comprida a sacola, e carrega apenas uma bisnaga de água, uma camisa de meia,
amassada e sem dobras na arrumação, uma pasta de dentes e uma escova. Não há
despojos, nenhum artefato de guerra. O oficial, seguido pela PM de olhos cujo
verde combina com a cor da farda, revista o moço de cima a baixo, nas partes...
Não há despojos. O major dá um tapinha amigável no ombro do moço, a PM também.
O tempo escurece com as
chuvas que engrossam. Os manifestantes não têm como se abrigar, a não ser nas
marquises; mantêm-se no lugar, no mesmo ritmo, para evitar a dispersão. As
patrulhas, de um lado e de outro da avenida, marcham em fila única;
apetrechadas, usam capas de plástico grosso, dos ombros ao meio das pernas. Não
têm hostilidade nos passos, inda que do pretume das capas sobressaia a silhueta
de agentes da Gestapo.
Afora Jaime Amorim,
presidente do MST que discursara no carro de som, os acampados vindos de Moreno
seguem mudos, os olhos serenos e atentos ao zumbido de uma marcha urbana. “Sou
do acampamento Margarida Alves”, diz José Antônio, baixo, meio gordo, 68 anos,
segurando uma vara sem nada na ponta, feito um pastor na mira de suas vacas. “A
polícia não vai me bater. Deus me livrou até do tiroteio em Camarazal”, diz,
referindo-se ao massacre dos acampados no Engenho Camarazal. Na outra mão,
segura, junto com outro camponês, uma cesta com bisnagas de água mineral, uma
garrafa térmica com café e sanduíches de queijo de manteiga.
Papéis picados são
jogados dos prédios, de um lado e de outro do começo da avenida; misturam-se à
chuva. A marcha está quase no fim. O entusiasmo cresce. Na Rua da Aurora,
esquina com a Riachuelo, a marcha estanca. A multidão comprime-se e dá conta de
oito mil pessoas. Na frente, uma faixa defende repúdio a quem se opõe ao
plebiscito – DEM, PSDB, PPS e Globo.
Em frente à Assembleia
Legislativa, enquanto sete sindicalistas se encaminham para entregar a pauta de
reivindicações aos parlamentares, os oradores se sucedem nos carros de som. Do
lado do rio Capibaribe, a patrulha que abordara o moço de manto negro, recebe
dele cravos brancos que põem no rebuço do colete. O major recebeu, guardando-o
no bolso do colete...
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife.
Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do
concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em
concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite,
integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”.
Tem três livros de contos e um romance.
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