Vereda tropical
* Por Urda Alice Klueger
É um
grande terreno baldio bem no centro de Blumenau, coisa espantosa nestes tempos
de especulação imobiliária. Eu passo muito ali, mas só comecei a prestar
atenção num dia do último verão, no auge do calor, tempo em que parecia que
todas as plantas do mundo, grávidas de sementes, preparavam-se para a
reprodução.
Naquele
dia em que olhei primeiro, o terreno todo estava coberto por generoso capinzal
de folhas finas, coisa assim de quase um metro de altura, explodindo de tanto
verde, sendo que cada pé de capim tinha um longo fiapo carregado de espigas
pejadas de sementes maduras. Tudo era fino, leve e bonito, naquele capinzal;
parecia-se com um quadro holandês do século XVII. E lá, pousado nos finos
fiapos que sustentavam as espigas, um imenso bando de passarinhos se deliciava
comendo as sementes maduras. Era uma barbaridade de passarinhos, penso que
centenas e centenas, pequenos e finos passarinhos que deveriam ser muito leves,
pois conseguiam pousar sem problemas naqueles fiapos de capim. Eu fiquei a
olhá-los, e de repente eles devem ter se assustado com alguma coisa, pois
saíram numa revoada, fizeram uma curva no ar – e, sossegados, voltaram ao seu
banquete, os pequeninos pés pousados naqueles finos fiapos de capim cheios de
espigas maduras. Olhei-os por bastante tempo, e por diversas vezes se
assustaram e revoaram – mas sempre voltavam àquela seara generosa feita de
sementes de capim. No outro dia eles estavam lá de novo, e no outro também.
Um dia,
os passarinhos sumiram – as sementes tinham-se acabado. Mas eu tinha ficado
encantada com aquele capinzal que parecia até translúcido de tão verde, bem
assim no meio da cidade, e não deixei mais de prestar atenção nele. E o verão
acabou, e veio o outono, e o capim continuava lá, já um pouco menos viçoso,
agora que passara sua época de reprodução. Imagino que os passarinhos não
tenham comido todas as sementes, que muitas delas tenham caído ali no chão,
prontas para hibernarem por alguns meses e nascerem na próxima primavera.
E o
outono foi fazendo seu trabalho de destruição. A cada dia o capinzal perdia um
pouco do seu viço; a cada dia o seu verde ia ficando mais próximo do marrom.
Dia a dia, acompanhei o que acontecia naquele terreno baldio.
Um dia, o
capim começou a cair, a morrer. E agora já não há mais capim, mas apenas uma
palha escura e morta, agora que o inverno chegou mesmo. E então voltou aos
nossos olhos o que houvera o tempo todo ali naquele terreno baldio: pedaços de
plástico, de vidro, coisas de borracha, sobras de concreto – o lixo que as
cidades produzem. Na minha mente, inclusive, ressurgiu o que houvera ali antes:
um bar mal-afamado, chamado Vereda Tropical, que criava um certo escândalo na
cidade, pois seus freqüentadores amanheciam o dia bebendo e às vezes punham-se
a brigar já em plena luz do sol, quando esta é uma cidade que leva muito a
sério a coisa da ordem e do trabalho, e se escandaliza quando há quem não vá
para as fábricas antes das cinco horas da manhã, e acha que desempregado é
alguém cheio de preguiça. Tanto escândalo causou aquele bar que a sociedade
constituída não descansou enquanto não lhe passou um trator por cima.
E então,
a natureza, benéfica, foi lá e criou aquele emocionante capinzal cheio de
passarinhos, para mostrar às pessoas que aquela esquina podia ser LINDA! Pena
que o inverno chegou, e eu descobri que debaixo daquele capinzal há o que
sobrou do tempo das raivas e dos preconceitos, que nas raízes das coisas belas
às vezes pode haver as sobras das coisas ruins. Pode funcionar como uma lição
para as nossas vidas. Sempre poderemos criar capinzais cheios de passarinhos
nos nossos corações.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
Uma belíssima metáfora, com jeito de lição. É preciso derrubar preconceitos e construir coisas belas sobre nossas cicatrizes. Bela história. Salvo engano, já a vi aqui.
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