Vela da vida toda
* Por
Marcelo Sguassábia
Existe uma tradição católica cultivada não sei onde, nem desde quando,
mas existe. A vela de toda a vida: uma mesma vela acompanha o fiel desde o
batismo até o velório, passando pela primeira comunhão, o crisma, o casamento,
a unção dos enfermos. Concluída cada uma destas cerimônias, ela é apagada e
guardada em casa, à espera do próximo uso, até que sua chama seja extinta em
definitivo junto com o seu dono.
Bela tradição, de profunda simbologia: a mesma chama se renovando nos
momentos decisivos da existência. Mestre Duña, o avatar da sabedoria suprema,
enumera alguns possíveis desdobramentos - do fato e, literalmente, da vela, já
que ela muito provavelmente trincará em vários pedaços e não estará mais
parando em pé ao fim da vida do marmanjo.
No batizado, ao lado do padre, o padrinho segura a vela. Este sofre de
Mal de Parkinson. É a primeira de uma série de fissuras no ainda reto bastão de
parafina.
Mestre Duña adverte que há de se fazer uma ressalva que precede o
batizado do cristão. Em caso de parto difícil, se acenderem uma vela nas
vigílias de oração, é essa que valerá oficialmente como sendo a vela da vida do
rebento, pois foi acesa por intenção dele - que para todos os efeitos já era um
filho de Deus, mesmo estando ainda na barriga da mãe.
Crisma. Sendo a confirmação do batismo, acaba também confirmando a sina
da vela rachada. Ela ganha novas fissuras quando o crismando a usa para bater
na mão de um colega de sacramento, que inventou de fazer chifrinho sobre sua
cabeça na hora da foto da turma.
Casamento. O padre se excedeu na homilia e deixou a vela acesa além da
conta, consumindo quase a metade dela. O noivo, que a segurava, derrama um
charco de parafina líquida nas mãos da noiva, quase na hora de colocar a
aliança. A noiva morde o véu para não gritar de dor, mas num sofrido espasmo dá
com o cotovelo na vela, que vai ao chão junto com o buquê de flor do campo.
Um belo dia, num interim de cerimônias, a estabanada faxineira foi
limpar o armário e a vela, mais uma vez, obedeceu a lei da gravidade. A essa
altura já são dezesseis pedaços presos um ao outro pelo barbante do pavio.
Extrema unção. Após a benção do padre, o moribundo, em seu leito de
morte, orienta a futura viúva: "Querida, tem só um toquinho de vela, mas
deve dar e sobrar para o velório, o último ofício dessa minha fiel companheira.
Você acende por uns dez minutos, apaga e coloca a pouca parafina restante no
caixão. Pode ser no bolso do paletó, para ficar perpetuamente comigo, junto do
coração".
O pavio, mal apagado, incendeia instantaneamente o terno de tecido
sintético, e em segundos temos um esturricado defunto duplamente morto.
Mestre Duña conclui, com sua proverbial sapiência: "Queridos
amigos, essas são apenas conjecturas. Uma advertência nem contra e nem a favor
desse costume, seja lá onde for costumeiro. Só quis refletir um pouco, e
fazê-los também ponderar sobre as consequências, nem sempre beatíficas, de sua
prática. Fiquem com meu abençoado abraço”.
* Marcelo
Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
A parafina haverá de se ressecar e rachar. Não acho uma boa ideia essa de vela da vida toda. Lembrei-me ainda da vela de sete dias e que dura quatro. Então, em matéria de velas, tudo não passa de ilusão, inclusive a serventia de clarear o caminho em direção à última morada. Quanto a minha mãe, ela era uma contumaz acendedora de velas e nelas acreditava piamente para ajudar em tudo. Momento difícil, medo? Acenda-se uma vela. Bom texto para meditar e rezar.
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