O romance da mulher excluída
* Por
Urariano Mota
Ouço agora nos ouvidos e
no peito o frevo “Ultimo dia”. Ouço no peito porque esse frevo, que é anúncio
de alegria e despedida com um título tão definido e definitivo, expressa também o sentimento que
tenho em relação a meu próximo romance, editado pela Bertrand Brasil. Digo meu
e paro, porque devia dizer nosso romance, pois “O filho renegado de Deus”é um
livro que escrevemos, eu, vocês, nossas vidas, nossas histórias e nossas
infâmias. Mas que ainda assim é um livro terno e carinhoso. Como? Não sei de
que cachorro doido é feito o homem, porque encontra lugar entre as crueldades
para a ternura.
Tentarei explicar. Ainda
ontem conversando com o meu filho, que depois de ler o romance me falou da
realidade que descobrira, eu lhe disse que assim era porque o livro narra os
crimes que temos debaixo do nariz, todos os dias, e não vemos. Mas que crimes
são esses? Em termos simples, o livro fala do desejo de amor impossível de
Maria, mulher gorda, baixinha, semianalfabeta, no Recife dos anos 50. Notem o
imenso paradoxo para todos os preconceitos: ser mulher, gorda e baixinha, tida
como albacora, em um Recife tão cruel, tão raivoso e canino, de morder e uivar,
na década de 50. E que mais? É que, contrariando a nossa ânsia de modernidade,
esse crime que discrimina pessoas e leva à morte, continua atual, amigos.
Continua presente, agora mesmo, onde houver gente que não precisa ser gorda,
nem baixinha, nem se chamar Maria, mas que é mulher ao seu lado, à sua vista,
agora mesmo.
Leitor, olhe as
camareiras do hotel. Olhe as operárias. Olhe as vizinhas, as empregadas
domésticas, as faxineiras, as balconistas.... olhe a sua mãe, que se mata ou se
matou sem um afeto, quantas Marias! É claro que o romance “O filho renegado de
Deus” está entre a intenção de ser revanche contra uma ordem odiosa e a
pretensão de ser uma obra de arte. Não sei se consegui, mas sei que nele
empreguei as minhas melhores forças e reservas.
Se falhei, não foi por falta de ambição, acreditem. Estava, estou, estamos
todos já fartos do mais ou menos, da
paixão que se recolhe entre punhos de seda e regras de bem falar e conviver em
sociedade. Chega. A vida urgente repele a falsidade.
Mas atenção, o livro não
é uma tese. Não é um discurso de palanque, não está na campanha eleitoral nem
na moda. É um romance. Da orelha do livro copio:
“O filho renegado de
Deus faz uma
denúncia e uma longa oração de amor para as mulheres vítimas da opressão
cultural e de classes no Brasil. É um romance para a reflexão de todos os
homens que conhecem as Marias encarnadas no espírito e na carne da Maria das
páginas a seguir. Um livro que é, ao mesmo tempo, uma ressurreição e um acerto
de contas.
Em O filho renegado de Deus, todas as Marias
assassinadas pelo desprezo e pela injustiça ganham uma nova vida, eterna e
amorosa, pelo poder criador da arte. E, na medida em que é uma ressurreição, é
também um acerto de contas com a sociedade e a história que matam mulheres como
se fosse natural, da natureza do homem que é fera.
Neste romance, o ajuste, o coração e o lirismo
andam juntos, unidos, porque o livro pune e desnuda, no mesmo passo em que
procura compreender no opressor um também oprimido. Mas cujo crime é
indesculpável. Toda Maria de todos os tempos, na pessoa da Maria do romance,
executada pelo desprezo e pela situação de nada ter, nem mesmo a própria vida...
Este livro fala para as mulheres violentadas, para
toda mulher que não é respeitada como pessoa, mas tão somente como um corpo. E
fala também para todos os homens, que não podem viver em uma sociedade tão
mutiladora”.
Ou como escreveu Maria Inês Nassif:
“O filho renegado de Deus consagra um estilo. Urariano Mota tece
histórias e personagens trafegando por realidades sociais e políticas,
aprofundando o efeito devastador das injustiças e preconceitos sobre a
humanidade.
Ele escreve: ‘Ama-se um gato,
ama-se um cachorro, um papagaio, uma flor que ninguém quer ou vê. Talvez esse
amor que deriva e vaga por objetos e coisas que não respondem, ou respondem
abaixo da fome de amar, talvez sejam os sintomas do afeto que procura no mundo
um indivíduo que lhe responda. Ou, quem sabe, o amor elástico, amplo e plástico
onde tudo cabe’ ”.
O lançamento é na quarta-feira
8 de maio de 2013, às 19 horas, na Livraria Cultura do Paço Alfândega. Termino
agora o texto e ainda escuto no peito o frevo Último Dia. Isso quer dizer,
amigos: toca e tocará o primeiro dia
para uma certa Maria, que sai do túmulo e do esquecimento.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e “O filho
renegado de Deus”. Tem inédito “O Caso
Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
Estranha apresentação de um mundo que sempre existiu, mas não teve a oportunidade de ser apresentado por ocupar papel secundário. Algumas vezes não o queremos ver, e quase todas das vezes deliberadamente não o vemos.
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