De como Juvenal se tornou um fenômeno
* Por Carlos Bozzo Junior
RESUMO Naná Vasconcelos, 68,
pernambucano, negro, oito vezes melhor percussionista do mundo e vencedor de
oito Grammy, viveu mais de 30 anos fora do Brasil. Seus fãs vão dos confrades
na música ao cineasta italiano Bernardo Bertolucci. Considerado um fenômeno,
Naná diz que a fama só importa em "cabeça de camarão".
Ninguém o chama de Juvenal, que oficialmente antecede o "de Holanda Vasconcelos".
Ninguém o chama de Juvenal, que oficialmente antecede o "de Holanda Vasconcelos".
O guitarrista Pat Metheny o chama de Doctor, e o percussionista indiano Trilok
Gurtu, de Paxá. Por oito vezes, foi chamado pela revista "DownBeat"
de o "melhor percussionista do mundo", em votação promovida entre
críticos pela publicação norte-americana dedicada ao jazz. O cineasta italiano
Bernardo Bertolucci não admite que o chamem de músico, mas sim de "A
Música". Quando alguém o chama de "Mestre", rebate,
humildemente: "Mestre está no céu"
O apelido pelo qual ele decidiu
ser chamado foi dado pela mãe, Petronila, quando ainda moravam juntos no bairro
Sítio Novo, em Olinda. "Ela foi encurtando de Juvenár' até chegar em
Naná."
O pai de Naná Vasconcelos,
Pierre, tocava manola --violão tenor de quatro cordas, amplificado-- na boate
da sede do bloco Batutas de São José, no Recife. Aos 11 anos, o filho já queria
ser percussionista. "Aperreei tanto batendo nas panelas e caçarolas de
casa que ele me deu um bongô, umas maracas e um afoxé", recorda o músico,
que procurou por trabalho apenas na primeira vez. Depois dela, diz ter sido
sempre convidado.
Acatou o pai e, aos 12 anos,
obteve autorização do Juizado de Menores para tocar na banda, com a condição de
nunca descer do palco. "Tocávamos 45 minutos e parávamos 15, para o
pessoal namorar. Eu ficava lá em cima, só olhando", conta Naná, que segue
obedecendo à regra imposta pelo pai desde o primeiro dia de trabalho: "O
que se via lá se deixava por lá".
O baile foi uma grande escola
para o ritmista --nos anos 50 não se usava dizer percussionista--, que terminou
o ginásio e saiu tocando para as pessoas dançarem, ao som de muito bolero,
mambo e chá-chá-chá. Nunca frequentou escolas de música e, autodidata também
para as escolhas literárias, lembra ter lido livros de Hermann Hesse e Carlos
Castaneda.
Após a morte do pai, deixou a
boate da sede do bloco. Em 1957, entrou para a Banda Municipal de Recife no
lugar dele, trabalhando como arquivista e distribuindo partituras para os
músicos, mas sem tocar. "Entendia que ritmista vinha depois do baterista,
e isso me incomodava." Comprou uma bateria à prestação e começou a
estudar, sem professor, de manhã, no camarim do teatro onde, na parte da tarde,
a banda ensaiava.
BAMBU Música ele ouvia basicamente pelo rádio --sintonizado por uma antena
sustentada por um bambu no telhado da casa--, e jazz era o que escutava na
emissora A Voz da América. Eis que surgiu a bossa nova e, com ela,
"Adriana", canção de Roberto Menescal e Lula Freire composta no
embalo de "Take Five", de Dave Brubeck. O tema era novidade, um jazz
diferente do tradicional, mas soava familiar ao garoto que adaptava para o
samba o que ouvia pelo rádio, além de imitar o solo do baterista de Brubeck,
Joe Morello.
Quando surgiu o primeiro festival
de bossa nova de Pernambuco, Naná foi a um dos dois lugares onde, no Recife, os
músicos se congregavam para oferecer e negociar seus serviços --os tradicionais
"pontos"-- e ali, na rua do Imperador, foi informado de que
precisavam de um baterista que tocasse "Adriana" e soubesse solar.
Naná, 17, mostrou que sabia e terminou 1961 com os colegas tendo-o na conta de
melhor baterista do ano.
Nos bastidores de um dos muitos programas de TV em que se apresentaria naquela
época, Naná e outros três músicos conheceram um bailarino brasileiro que
radicava em Portugal. No improviso, nasceu o Quarteto Yansã, arrebanhado com a
finalidade de tentar a sorte em Lisboa, primeiro destino internacional do jovem
músico.
A trupe, porém, deu com a cara na porta --o bailarino, que prometera ajuda, não
estava na cidade. Rodavam a esmo por Lisboa quando, de repente, Naná ouviu:
"Negão, o que você está fazendo aqui?". Era o cantor paulistano
Agostinho dos Santos, o "Rouxinol", que havia gravado a trilha do
filme "Orfeu do Carnaval".
Santos, que Naná conhecia de
tocar na noite e na TV, também estava na pior: tinha enganado o comandante do
navio no qual cantava e deu no pé, dizendo que precisava do passaporte (retido
até o fim do cruzeiro) para ir comprar alguns dólares em terra.
Sem dólar nem trabalho, o cantor se uniu ao grupo. Juntos, fizeram vários
shows, em que a presença de celebridades como o jogador Eusébio, do Benfica,
era uma constante. Aproveitaram o reconhecimento e gravaram o disco
"Agostinho dos Santos".
De volta ao Recife, em 1967, Naná foi à casa do compositor Capiba. Queria
convencê-lo de que era o único músico capaz de tocar o maracatu por ele
composto para representar Pernambuco no festival O Brasil Canta No Rio.
O evento não pagava transporte,
alimentação nem hospedagem. Capiba indagou: "Meu filho, você conhece
alguém lá no Rio de Janeiro?" "Conheeeeço", mentiu. "Tem
lugar para ficar?" "Teeenho", rementiu. Ganhou do compositor as
passagens de ida e volta. De madrugada, saindo para pegar o ônibus, ouviu da
mãe a profecia: "Você não volta mais. Deus o abençoe", conta, os olhos
marejados.
A hospedagem ele também descolou
na esperteza. Aproveitando a tumultuada chegada ao hotel dos seis integrantes
cegos do grupo Titulares do Ritmo, se fez passar por membro do
"entourage" e conseguiu um quarto.
A música de Capiba não ganhou o
festival, mas Naná ganhou um amigo e um trabalho. Pelas mãos de Geraldo Azevedo
foi a uma festa na casa de Milton Nascimento e, tocando em suas panelas,
encantou-o. Foi convidado para gravar com o mineiro. A pegada percussiva
africana de "Sentinela" é dele.
Após participar de grupos de MPB
como O Som Imaginário, A Tribo e Sagrada Família, foi convidado pelo
saxofonista argentino Gato Barbieri para shows em Buenos Aires. Lá se aprimorou
no berimbau, que já vinha experimentando. O instrumento, que deu ao grupo de
Barbieri uma nota exótica, ganhou, nas mãos de Naná, nova reputação --além de
uma sonoridade peculiar, que o percussionista atribui ao LSD.
"Foi bom tomar. Nunca tomei sozinho, mas em companhia de meus
instrumentos." Gosta de contar que, nessas ocasiões, deixava a casa limpa
e provida de alimentos e esperava o efeito bater, deixando os instrumentos por
perto. "Quando a reação vinha, a primeira coisa que eu queria era tocar.
Minha sensibilidade aflorava, e eu ficava concentrado só na música." Hoje,
aprecia apenas um bom vinho ou uma boa cachaça, mas nunca antes de se
apresentar.
Foi com Gato Barbieri que chegou
a Nova York. Lá, morou por cerca de um ano com o cineasta Glauber Rocha, que,
em tom jocoso, assim resumia o novo som que o pernambucano tirava do berimbau:
"Você fodeu com os baianos"
Enquanto no loft convivia com
colegas de cinema de Glauber, como Bertolucci e Jean-Luc Godard, fora dele o
músico ganhava fama própria, tocando o que seu anfitrião chamava "jazz do
Terceiro Mundo", no icônico Village Vanguard. A imprensa referia-se a Naná
como "The Jungle Man", por seu exotismo e pela maneira surpreendente
de tocar. Seus dois minutos de solo rendiam intermináveis aplausos e assobios.
Naná com Gato Barbieri consolidava, ao lado de Airto Moreira com Miles Davis, o
sucesso da percussão brasileira pelo mundo. Em 1970, saiu em turnê com Barbieri
pela Europa e resolveu ficar.
Escolheu Paris para fixar
residência e gravar o primeiro de seus mais de 30 discos,
"Africadeus" (1971), além de inúmeras trilhas sonoras para cinema,
teatro e balé. A capital francesa foi a plataforma inicial para inúmeras
parcerias que faria com músicos superlativos nas três décadas seguintes.
Com os multi-instrumentistas Don
Cherry ("um dos maiores músicos que conheci, um conservatório
ambulante") e Collin Walcott, formou um dos grupos pioneiros da
"world music", o Codona, que existiu entre 1978 e 1982. Ao lado de
Egberto Gismonti, gravou, em Oslo, em 1976, o mítico disco "Dança das
Cabeças".
No Japão, para onde tinha ido em
turnê com Gismonti, conheceu Pat Metheny, com quem tocou e gravou e que
introduziu à MPB de Milton Nascimento e Toninho Horta. Fez três apresentações
com Miles Davis, mas não quis participar do trabalho seguinte do trompetista
--o disco era "Tutu" (1986). Optou por continuar tocando com Jack
DeJohnette --que, diz, justificando a escolha, não é baterista: "É um
músico que toca bateria".
Após viver fora do Brasil por
quase metade de sua vida --além de cinco anos em Paris, passou 27 nos EUA--, há
13 anos voltou a fixar-se no Recife. Sua produtora e atual mulher, Patrícia, é
também sua sobrinha. Com ela, teve sua segunda filha, Luz Morena, 13 --Jasmim
Azul, 18, nasceu de outro relacionamento--, que conhece o parentesco entre os
pais. Naná não vê nada disso como problema.
"Sou muito aberto",
diz, frisando que, por isso, "muita gente" pensa que ele é gay ou
bissexual. "Sou casado e nunca dei meu alterador de fava', mas não tenho
nada contra. Adoro meu lado feminino e gosto muito de mulher."
Em 2007, um susto o fez passar a
tocar, a cada show, com mais rigor e intensidade. Rogério Holanda, cirurgião
cardiovascular e torácico, estava de plantão no hospital onde Naná deu entrada,
com falta de ar. "Identificamos um quadro chamado pneumotórax
hipertensivo. Uma bolha de ar preenche o espaço que é do pulmão, causando um
mal-estar muito grande e podendo levar à morte em pouco tempo", diz o
médico, que o salvou retirando um pedaço do pulmão lesionado.
Sua recuperação foi excelente:
dois meses depois estava regendo, como tem feito nos últimos 12 Carnavais, o
enorme grupo com mais de 500 batuqueiros oriundos de diferentes nações de
maracatu.
Unir as nações, além de um
trabalho diplomático, é muito técnico. Cada um desses grupos tem seu
"baque" (batida), seu jeito de afinar o tambor e de levar o ritmo.
Algumas nações são mais lentas, outras, mais aceleradas e, quando se misturam,
e a emoção bate forte, o som, no dizer dos músicos, "asfra", dá
errado. Naná sabe disso e dá o ajuste. É algo como reunir as escolas de samba e
fazer com que toquem juntas, respeitando suas rixas e rivalidades. Ele assim
faz.
A carreira consistente, pontuada
por premiações estrangeiras --só Grammy, foram oito--, aplicou ao nome de Naná
o epíteto "fenômeno". Ele recusa, dizendo que fama "é
besteira". " Ela está só na cabeça, na cabeça de camarão".
A humildade é marca notória do
músico; a ela o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), soma outra:
"Naná é uma referência não só pelo seu talento mas pela sua
generosidade". No último Carnaval, o músico recebeu das mãos de Campos a
mais importante comenda estadual, a Medalha da Ordem do Mérito dos Guararapes,
no grau Grã-Cruz. "Ele mudou a vida de muitos jovens pobres da periferia,
que viram nele a oportunidade de crescer e desenvolver seus talentos."
Os adjetivos parecem não grudar
em Naná. Sua receita de criatividade, diz, é pensar que nada sabe. E explica
com o que chama de "as quatro sabedorias africanas".
"A primeira diz que a pessoa sabe, mas não sabe que sabe. Para essa
pessoa, damos uma força. A segunda é a da pessoa que não sabe, mas sabe que não
sabe. Ela é consciente, então não atrapalha. Essa nós abraçamos. A terceira
sabedoria refere-se àquele que não sabe, mas acha e diz que sabe. Esse tipo se
evita. A quarta sabedoria é a daquele que sabe, sabe que sabe, e nós o
seguimos. Não concordo muito com isso; acho que cada vez mais, a gente sabe
menos."
É hora de o Brasil saber de Naná
Vasconcelos.
* Crítico musical
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