A bela adormecida
* Por Daniel Santos
Durante
os meses em que minha mãe se recuperava de uma septicemia quase fatal, morei
com uma tia que, sem o saber, me revelou, ainda na adolescência, o imenso
talento das mulheres para a diplomacia.
Pois
essa tia gastava boa parte do salário em produtos de beleza, que, ela dizia,
usava para agradar ao marido. Por isso, toda noite, antes de se deitar,
demorava-se no banheiro com cremes, óleos e loções de Paris.
Impaciente,
o companheiro chamava da cama e ela “já vou, já vou”, mas cuidava-se tanto que,
ao ter com ele, encontrava-o, no mais das vezes, adormecido, ressonando
frustrações, enquanto ela dormia na santa paz.
Esses
desencontros repetiram-se com tal freqüência que, certa noite, agradavelmente
perturbado pelo perfume da sua toalete, entendi por que, de fato, demorava
tanto a se apresentar: ela o iludia até a chegada do sono!
Na
verdade, não o queria como homem, e sim como companheiro que, de preferência,
nem a tocasse. Não, nada de toques, de apertos mais intensos. Em vez de
intimidades com o marido, preferia manter-se bela.
Entendi,
assim, com certa perplexidade que, a par do seu evidente poder de sedução, a
beleza também protege quem, ainda hoje, em certos momentos, deixa-se submeter.
Mas, seja lá como for, a beleza salva.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais
de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no
Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha
imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma
gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma
negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de
conclusão, em 2001.
São complexidades da mente humana. Para se mostrar bela, escondia-se.
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