O dia nacional da mentira
* Por
Amilcar Neves
Houve, de verdade, um dia da mentira no Brasil. E foi num 1º de abril.
Há 49 anos. Exatamente em 1964. Acreditava que fosse assunto pacífico, que não
se precisasse mais esclarecer o que aconteceu, mas o que se encontra por todos
os lados é uma dose enorme de desinformação, outra dose fantástica de má-fé e
uma terceira dose monumental de falta de senso crítico.
Menos de 20 anos antes da nossa mentira, a Alemanha nazista foi
derrotada. De lá para cá, fazem-se inúmeros filmes, publicam-se incontáveis
livros, escrevem-se infindáveis teses, artigos, dissertações e ensaios sobre o
assunto. A tônica é a condenação da barbárie de um grupo que assumiu o poder
para desvirtuá-lo e pôr em prática teorias esdrúxulas e intolerantes a fim de
submeter pessoas por raça, cor, ideologia, religião, gênero, orientação sexual,
o que fosse - submeter pessoas que não cometeram crime ou delito fora terem
opinião contrária aos poderosos e as prender, torturar, matar e sumir com os
seus cadáveres. Hoje, e desde o fim da 2ª Guerra, todos condenam o nazismo, bem
como o fascismo, seu aliado na Itália.
No entanto, o que os nazistas fizeram na Alemanha com judeus e
opositores internos, ou seja, com aqueles que se recusaram a marchar em
ordem-unida ostentando a suástica, a ditadura brasileira fez aqui dentro. E as
pessoas, várias delas, fingem esquecer que houve um golpe de Estado que
derrubou um governo legitimamente eleito e que haveria eleições democráticas
logo ali adiante, em 1965.
Cada vez fica mais clara, na História, a ingenuidade da cúpula militar
brasileira - para dar razão à versão de que os nossos generais presidentes
morreram praticamente na miséria, "apenas com o soldo da caserna". Se
não ganharam nada do ponto de vista pessoal, caíram na conversa como patinhos
inexperientes e despreparados: caíram na conversa de políticos inescrupulosos
que não conseguiam o poder por conta própria, isto é, pela força dos votos (que
não tinham), caíram na conversa de empresários inescrupulosos que trocavam
apoio logístico e financeiro por obras faraônicas e lucros empolgantes, e
caíram na conversa do governo "democrático" dos Estados Unidos que
via com enorme má vontade os ensaios de um país do tamanho do Brasil de sair da
tutela americana e se abrir a novos parceiros, especialmente comerciais e
industriais, levando consigo boa parte da América Latina e, quiçá, uma dúzia de
outras nações subdesenvolvidas.
Criou-se então o conto da carochinha do comunismo que tomaria o Brasil
em instantes - ficção que não é sustentada por nenhum documento até agora
revelado - e o pessoal incômodo pôde ser alijado. Até o guarda da esquina
apontava seus desafetos aos algozes de plantão. Isto pode; na visão de alguns,
tinha de ser feito assim. A diferença com o nazismo é que lá fazia-se o mesmo
em alemão.
A triste noite de 21 anos trouxe ao Brasil e aos brasileiros um prejuízo
ainda não contabilizado, mas o fato é que até hoje não conseguimos retomar o
nível de conscientização social, política e humana que tínhamos, como povo, no
início dos anos 60.
Sumiram, como se não tivessem existido, milhões de documentos da
ditadura. Se militares, políticos e empresários da época estavam tão corretos
no que faziam, e agiam dentro da lei, por que não abriram os arquivos da
repressão?
O diabo é que agora quem está liberando documentos é o governo dos EUA,
e estes são implacáveis nos nomes, nos fatos e nas motivações. Só não vê quem
não quer, quem age de má-fé.
* Amilcar
Neves é escritor com oito livros de ficção publicados.
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