As empregadas
* Por Mara Narciso
A relação patroa e empregada é sempre emocional, regada a amor ou ódio
ou ambos. Mesmo quando as duas se esforçam pela indiferença. Coloca-se dentro
da vida uma desconhecida que vai participar, querendo ou não, e geralmente não
quer, de toda existência na casa. Vê os humores, odores, forças e fraquezas. E
tem inveja. É uma testemunha auricular de ascensões e descidas. Sabe o que se
passa, até mais do que a patroa. Não é da família, e nem é um móvel da casa. É
uma intrusa indispensável. Carrega o pesadíssimo piano, e mais alguns anexos
sujos. Evitemos a hipocrisia. Trabalha porque precisa, leva salário “justo” e
muito do que a empregadora não quer mais, e, ficando livre da tralha, ainda
posa de bondosa. Trata bem e se vangloria disso, como se fosse um favor agir
assim. Nem todas são cordiais, seja uma, seja a outra.
Sem entrar no mérito da honestidade, o relacionamento é difícil e meio.
É um casamento imperfeito em que os dissabores se sobrepõem aos sabores. Então,
o governo entra na história, para organizar a bagunça e ordenar as horas
extras. Consertar não vai, por ser algo errado, que uniu restos de escravidão
com leve verniz de civilidade. Caso queiram, as novas gerações farão brotar
outra mentalidade. Que surja uma relação empregatícia, sem a pirotecnia infame
de que se trata de alguém quase da família, tão próxima que é chamada pela
alcunha infeliz de “secretária”. Todos vão pegar no pesado, caso se sobreviva
às leis. E que se comece já, sem delongas, pois lei é lei.
A convivência patroa-empregada, embora seja difícil devido as suas
peculiaridades, era vista como flexível e negociável. Agora a lei invade essa
dupla sensível e pode ser que não dê boa coisa. É como se um casal discutisse
uma crise no casamento e um auditor se sentasse ao lado deles, e
demagogicamente definisse que apenas o lado mais fraco pudesse ganhar. Leis são
indispensáveis para amansar abusos dos dois lados, mas o endurecimento sem uma
situação intermediária para adaptação, ou seja, antes de a patroa ganhar mais,
poderá transformar o lado em questão em desempregada.
Analisemos um caso de uma empregada de 56 anos e que não está dando
conta do serviço de antes (tarefa combinada na contratação) devido à idade, e
faltam apenas 4 anos para se aposentar. Caso, devido às novas exigências, seja
substituída por outra que, mais jovem, dê conta da tarefa, será punida e não
beneficiada. Quem dará emprego braçal para uma quase sexagenária? Nem todas
poderão atender em balcão de loja ou ser secretária, inclusive esta, que mal
sabe conversar. Ficarão fora do mercado mulheres sem qualificação, mas que
poderiam continuar como domésticas. A possível patroa não está abonada o
suficiente para lhes dar o emprego dentro das novas exigências. Com o
desemprego em massa será preciso recorrer à bolsa-família.
Vejamos o lado oposto, uma velha senhora que, contando as moedas,
consegue pagar uma diarista três vezes por semana. Com a nova lei esse ajeito
fica inviável para quem não consegue mais cuidar de si nem da casa. Aposentada,
ela poderá ter uma vizinha tão pobre quanto ela, uma jovem que não tem renda, e
que aceitaria fazer o serviço por alguns trocados. Porém a lei não o permite.
Nesse caso a informalidade ganha força.
Um casal jovem tem um filhinho. Estão começando a vida e podem pagar uma
babá e não duas como a lei exige, ou uma creche. A mãe deverá abandonar o
trabalho para ficar em casa olhando o filho? Haverá uma regressão na
arquitetura social. Ou ainda, uma empregada tem um filho, e a família
empregadora precisa pagar a creche, como despesa extra. Mulheres com filhos
pequenos já são preteridas, e mais ainda agora. Nos países ricos só os muito
ricos têm empregada e ninguém morreu por isso. Organizando a família e cada um
fazendo uma parte da tarefa será possível viver bem, embora as características
sociais de tais países não sejam semelhantes às do Brasil.
Há cidades pobres em que uma empregada doméstica aceita receber R$170,00
por mês, trabalhando todos os dias da semana. Injustíssimo e até vergonhoso,
mas totalmente real. Com o endurecimento da lei, há vontade de segui-la, porém,
com impossibilidade monetária a situação levará muita gente à miséria ainda
maior, pois de renda injusta não haverá renda nenhuma.
Os burocratas podem estar bem intencionados, mas entendem pouco do mundo
real. Os encargos sociais, caso pudessem ser pagos pelas patroas que aí estão,
levariam a ganhos em qualidade de vida para uma população escravizada por uma
jornada interminável. É normal haver uma grita de quem está perdendo seus
privilégios. Com o tempo haverá uma rearrumação. Eu, de minha parte, já estou
cumprindo a lei e nem de longe pretendo com esse modesto artigo fazer algum
levante. Minha contribuição para os ajustes finais é mostrar que com intenção
de ajudar aos desfavorecidos a lei pode atrapalhar.
*Médica
endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de
Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora
do livro “Segurando a Hiperatividade”
Oi, Mara. Você levanta, com seu texto, desdobramentos que a maioria das pessoas certamente ainda não atentou. Nem mesmo os políticos. Parabéns pela lúcida análise.
ResponderExcluirSou favorável a boas condições de trabalho e remuneração justa, sem hipocrisias e falsas caridades. A lei vem com peduricalhos que vão atrapalhar. Todos e qualquer empregado doméstico que dormir no emprego receberá adicional noturno e horas extras (dormindo?). Para todos será feito um seguro contra acidentes. O custo é inviável para os patrões nacionais. Por falar nisso, como já acontece com brasileiros na Europa e USA, com as demissões serão abertos postos de trabalhos para estrangeiros. No Acre tem um tanto deles. Sei que balancei o vespeiro, mas é preciso olhar as nossas feridas de tantos séculos. Obrigada por comentar.
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